Ao Cair a Ficha, Escolhemos


         Por que o conhecimento de que alguma situação dolorosa não basta para nos protegermos dela? Essa pergunta acompanha a Psicanálise desde o seu início. Sigmund Freud[i] formulou o conceito de Inconsciente, ampliando a percepção da  complexidade psíquica. Ele  evidenciou a diferença  entre o recheio de uma vivência das  palavras que são ouvidas teoricamente[ii]. Sugestões não alcançam mais a importância que tinham antes da psicanálise, pois se tornou claro que uma pessoa  somente modifica a sua atitude,  quando de fato o seu pensamento, ligado a sua essência,  fizer  um sentido muito maior do que a sua vontade imediata.

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         No cotidiano, é comum percebermos o verbo ‘aceitar’ associado às fragilidades humanas: aceitarmos a morte de um ente querido, aceitarmos uma doença grave, aceitarmos um término de  relacionamento. No entanto, em muitas dessas situações nas quais o luto de um ideal se faz presente, ninguém nos pergunta se aceitamos ou não. Então, por que mesmo  o termo  aceitar  é empregado onde não se possui escolha?  A expressão antiga ‘caiu a ficha’ provém da época em que utilizávamos fichas para chamadas telefônicas e elas caiam quando uma ligação se completava. Cair a ficha ainda é usada atualmente, talvez porque,  mesmo após não existirem mais orelhões, ainda experimentamos o nosso encontro com a realidade, seja ela boa ou ruim, como uma conexão com o outro. Somente quando a ficha cai, ou seja, quando experimentamos sentir o que pensamos.

         Qual é o momento em que cai a ficha? Podemos acelerar esse processo? O excesso de informações acessíveis pelo avanço tecnológico da comunicação permitiu que os humanos atribuíssem mais valor à consciência somente a partir de  suas sensações, do que de suas vivências.  Construímos a crença de que por obtermos mais  informações sobre a realidade estão em contato com ela. Porém, a nossa percepção da realidade é sempre parcial, pois a nossa subjetividade é influenciada por nossos desejos inconscientes que impedem que algumas fichas entrem em queda. Talvez esse possa ser um dos valiosos motivos para preferirmos, sem escolha, desmentir situações nas quais não temos escolha pela ilusão da ideia de que as aceitamos.

 Não aceitamos o amor ou o ódio em nós, esses sentimentos  simplesmente nos invadem. Decidimos, no entanto, sim, o que fazemos a partir deles. A percepção dos limites não significa obediência, nem humilhação, nem mesmo falta de liberdade. A liberdade está em realizarmos escolhas possíveis. As impossibilidades podem nos aprisionar quando são interpretadas como submissão. A humildade diante de nossa condição humana é confundida com uma sensação de humilhação quando um desejo infantil onipotente nos engana e acreditamos que existe a possibilidade de uma reversão de limites. O limite está no tempo e na história, nada é descartado. Um vacilo, um tropeço, um erro,  mesmo fazendo parte de da história, nos marca. Os espelhos quebrados não podem ser restaurados. Por isso, conhecimento não é sabedoria.

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Nada é descartado. A psicanálise, em seu desenvolvimento foi discutindo o determinismo, o acaso e a repetição[iii]. Como cantava  Cazuza[iv], eu vejo o futuro repetir o passado.  Não há como simplesmente descartarmos a história ou construirmos uma nova versão dos fatos. Considerar a fragilidade humana com humildade demanda percebermos que o nosso poder não está nas escolhas impossíveis, em modificar o que já aconteceu. Onde está o nosso poder? Talvez em desistir dele, com a sabedoria de conversar com o nosso desejo de tê-lo.

         Não possuímos escolha sobre a nossa condição humana, a qual nos convoca a acreditarmos na nossa finitude. O nosso destino enquanto futuro é a morte. Porém, também o nosso destino corresponde à  força que está além da nossa pequenez, ao que está na realidade e nos atinge no meio do caminho de nossa existência. Experimentarmos o nosso tamanho muito menor do que o nosso narcisismo[v] é libertador, pois essa vivência faz com que a distinção entre as nossas impossibilidades e as nossas escolhas passe a ser a ficha que nos conecta com a vida.

Simone Engbrecht - psicanalista



[i] Sigmund Freud – neurologista e pai da Psicanálise.

[ii] Essa diferença foi descrita por Freud em 1915 no texto O Inconsciente.

[iii] Referência ao texto de Sigmund Freud, Alem do princípio do Prazer (1920).

[iv] Cazuza foi um cantor, compositor e músico brasileiro (1958- 1990). A música referida é O Tempo Não Para

[v] Narcisismo é um conceito psicanalítico remetido ao mito de Narciso e apresentado em Sobre o Narcisismo: uma introdução em Freud  (1914)

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