A Adolescência da Humanidade


Sentimos que o mundo está de cabeça para baixo quando nos decepcionamos com a humanidade. Por mais estranho que possa ser, são também as decepções que criam a possibilidade de nos tornarmos mais humanos. O amadurecimento dos humanos não acontece como o de uma fruta madura, que alcança o seu sabor doce por causa do calor ou simplesmente pela passagem do tempo. Podemos nos tornar doces ou amargos, amadurecidos à força ou eternamente infantis. O que produz o nosso amadurecimento é bem complexo. A passagem para a vida adulta traz, em nossa sociedade, um período especial de separação de pais e filhos, de criadores e criaturas, onde somente alguns tem a oportunidade de florescer. A série Adolescência[i] inquieta pela sensibilidade sobre como a pressa em nos ocuparmos em como somos representados por imagens pode destruir a vida humana.

     

Curiosidades Cartográficas
 Foto: Reprodução

   
O  amor que nutre o nosso orgulho, a nossa vaidade e os nossos ideais, ingressa de maneira  volátil quando vivemos mergulhados na ilusão de que ele possa estar nos likes ou na métrica de visualizações na internet. Esse é um amor esverdeado de tão dependente. Enxergar fragilidades e fazer contato com a realidade não parece tarefa simples na contemporaneidade, pois as decepções quebram o espelho, ou a tela, e um  ideal de amor correspondido[ii]. Sem humildade, o amor não comunica, não floresce e nem amadurece. Pois, segundo o poeta[iii], amor é privilégio de maduros.

         A série Adolescência remete ao tom trágico que esse período pode nos revelar. Acompanhar o desespero de um pai que descobre que o filho cometeu um crime possui um eixo diferente de um drama, onde poderíamos entender decepções como frustrações que a vida impõe. A arte pode abandonar o drama e ampliar a nossa visão de mundo para reflexões que escapam de um pensamento focado em julgar e condenar. Na tragédia, não há um drama linear onde a  descoberta final seria a revelação de quem matou quem. Na tragédia, o crime já estão em seu princípio e, na sua narrativa, a complexidade de diversos sofrimentos humanos está presente. O silêncio ou a fuga do nosso olhar movido pela nossa vergonha diante de idealizações pueris pode deixar a nossa bússola com o ponteiro girando sem parada, quando tentamos buscar um drama dentro de uma tragédia e não amadurecemos. 

Foto: Reprodução

         A responsabilidade pelo cultivo de ideais exige que não sejamos apenas obedientes a padrões: ‘não irei bater porque assim não serei como o meu pai’, ‘não irei chorar porque assim serei forte’ ou ‘irei mandar em um adolescente porque assim oriento ele para a vida’.  Quando estamos focados em obedecer, alicerçados em uma justificativa linear que nos assegure de uma certeza, podemos não escutar nada além de um comando e nos tornarmos autômatos. Autômatos são aqueles que se acreditam dentro de um drama e estão imersos numa tragédia.

 Os adolescentes questionam a obediência cega à repetição. Esse movimento jovem realiza uma  reflexão e  provoca alguns adultos: qual é o sentido dos seus atos. Alguns adultos, sim, somente aqueles  que diferenciam a justificativa de sentido, aqueles que percebem a servidão voluntária[iv], podem perceber a tragédia humana. Existem bússolas que nos orientam somente para onde se localiza quem manda e quem obedece ou quem está acima de quem. Quem busca o poder da força de ações destrutivas, justificando que se sente ameaçado pela falta de reconhecimento, pode ficar é guiado somente por esse norteador. A força destrutiva pode trazer de fato visibilidade, cada um que  utiliza dela pode reconhecer o olhar de medo nos olhos dos outros. Navegadores orientam, a bússola não serve para nada se não sabemos para onde pretendemos ir. A forma com que construímos a nossa cartografia nos interessa aqui. A questão para a qual buscamos nos orientar: os semelhantes irão se reconhecer na maldade do humano que provoca medo ou irão se reconhecer na fraternidade presente nos laços promovidos por atitudes solidárias  diante do reconhecimento do desamparo? Diante de um adolescente, conversamos sobre o desamparo coletivo, reconhecendo a nossa fragilidade e o desejo de cuidar?

        

Foto: Reprodução

Diante das mudanças provocadas pelas novas condições de possibilidade de ponto de vista diante de configurações de  velhos mapas, a humanidade  não possui uma  vivência capaz de ser utilizada como referência diante da proporção dos efeitos que as produções tecnológicas podem alcançar. Estamos vivendo como um humano em adolescência. Descobrindo a força da destrutividade e o desamparo diante da decepção com os líderes.

         As novas gerações podem trazer  renovação. Essa é a nossa esperança, não enquanto uma espera passiva, mas enquanto vislumbre de horizontes. O teatro não foi substituído pelo cinema. O cinema não foi substituído pelo streaming. Inclusive, depois da Pandemia, as pessoas perceberam o seu desejo de estar em presença. A conversa dos adultos com os adolescentes, olhando nos seus olhos, pode revelar a conversa entre humanos com uma simetria de quantidade de experiências acumuladas pelos anos. Os humanos apreciam o coletivo de sua espécie. A transformação da sociedade destrutiva depende de laços sociais[v] onde possamos de fato conversar com a presença de olhares compartilhados; olhares que  encaram a nossa vergonha da fraqueza diante da maldade.

Simone Engbrecht

psicanalista



[i][i] Adolescência, série da Netflix de 2025 criada por Jack Thorne e  Stephen Graham e produzida o Reino Unido.

[ii] Esse tema remete ao texto desse blog, Amizade é um amor não correspondido.

[iii] Carlos Drummond de Andrade(1973) , Amor e seu Tempo

[iv] Referência ao conceito apresentado por Étienne de La Boétie (1530-1563) na obra Discurso da Servidão Voluntária.

[v] Essa ideia foi desenvolvida por Sigmund freud em 1921, Psicologia das Massas e Análise do Eu.

Postagens mais visitadas deste blog

Ao Cair a Ficha, Escolhemos

A Madrasta Da Branca De Neve Foi Naturalizada Como Alguém Que Envelhece