O acaso vai nos proteger enquanto consumirmos tempo


         O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído[i]. Uma banda genial como os Titãs abriu possibilidade de uma reflexão sobre as distrações e o acaso. É comum oferecermos lápis e papel para crianças que precisam esperar alguma coisa. Elas podem ser poupadas de uma frustração pela distração, quando ainda não possuem recurso interno suficiente para sustentar a paciência. 
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         Há dois sinônimos para entretenimento: diversão e distração. A indústria do entretenimento cresce. Poderíamos apressadamente justificar que nos divertimos mais por possuirmos mais tempo, tanto por estarmos menos envolvidos com tarefas, como por termos conquistado uma vida com maior longevidade. Porém, é comum que a falta de tempo seja uma queixa constante.
         Ingressemos na reflexão sobre o tempo, portanto. Porque motivo precisaríamos nos distrair ou realizar tarefas para passar o tempo quando ele nos parece escasso? Logo percebemos que não podemos interpretar a temática do consumo somente do ponto de vista da oferta, mas sobre a adição presente nele.
         Alimentos podem ser consumidos a fim de saciar a fome ou o  desejo de sentir um sabor específico, mas, também podem ser utilizados por adictos, em compulsão. A adição não pode ser computada pela quantidade de produto. É comum a tentativa de regular uma ação por uma medida: o tempo ideal de sono, de lazer, de trabalho, de estudo, de pratica esportiva. Utiliza-se para tanto os argumentos de malefícios físicos, como a luminosidade excessiva para os olhos, a falta de movimento, e outros a fim de encontrar um ponto de equilíbrio. 
         Em psicanálise, as adições são compreendidas a partir das compulsões, representantes de uma pulsão destrutiva[ii]. destrutividade quando não pode ser dissolvida pela pulsão de vida, manifesta-se de maneira desligada. Não basta observarmos os males concretos de qualquer adição para que o alarme do exagero seja acionado. O alicerce básico para observarmos o tempo utilizado na vida está sob o nosso domínio. Ele vai passar, mas a vida que passa é nossa. Estejamos ligados nela.  
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         Enquanto distraídas, as pessoas delegam ao acaso, ou a instituições de entretenimento,  a sua proteção. Há uma preocupação com o uso de álcool, artigos eletrônicos, internet, drogas, alimentos, bens de consumo, pessoas usadas como objeto, porém, o vício no uso do tempo acontece quando ele está sendo queimado para distrair-se da vida e não na vida.  
      Estamos distraídos da vida quando ela acontece a serviço de um alívio. Quando precisamos nos desligar do momento presente com uma pressa que ele passe. Se o presente passar, a vida passa. Absorver os detalhes únicos em nossa existência nos envolve em nossa singularidade, eles nos preenche, sem mais a necessidade de fugir de um vazio. A vida pode ser divertida quando não precisarmos nos distrair de como ela é. Utilizemos o tempo de nossa vida com ele se sem sumir com ele.
Simone Engbrecht - psicanalista



[i] O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído – parte da letra da canção Epitáfio, da banda Titãs.
[ii] Pulsão de morte- conceito formulado por Freud em 1920.

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