Incômoda Acomodação
“Às vezes, o nosso destino parece com uma árvore frutífera no inverno. Como poderia, com uma aparência tão triste, podermos pensar que estes galhos hirtos e ramos secos de novo floresçam e dêem frutos na próxima primavera.” Johann Goethe
No início dessa pandemia, era bem comum a ilusão de que o isolamento, a distância entre 2020 e 2019, ou os prejuízos causados pelo vírus trariam uma transformação das pessoas, que todos teriam a oportunidade a serem mais humanos, mais conectados a coletividade e a fragilidade de nossa espécie. Porém, sabemos o quanto qualquer simples mudança é difícil. Resistimos a tudo, sejam mudanças propostas por um avanço tecnológico, sejam modificações necessárias a fim de convivermos com uma perda, ou, até mesmo, mudanças desejadas. A pandemia não trouxe mudanças de caráter em ninguém, talvez as pessoas tenham tomado consciência do quanto as pessoas podem buscar um progresso acomodado à morte. Mas a solidariedade apareceu apenas na abertura das gavetas de cômodas de quem já a cultivava.
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Foto: Reprodução |
A pulsão de morte é uma tendência inata a repetir e a retornar a um estado anterior, a quietude
de tensões, a zerar tudo. Compreendendo que a vida nos retira do Nirvana,
precisamos estar atentos à acomodação ou a falsas mudanças. Uma mudança de emprego, de cônjuge ou até
mesmo de moradia, podem carregar uma tendência a resistir a uma mudança mais
profunda. Se não é para termos mais sucesso, mostrarmos aos outros a nossa
felicidade, nos apropriarmos de mais bens, adquirirmos força, quais seriam as
mudanças que a psicanálise escutaria em nossos desejos?
Reconhecimento de si é a mudança viva de todos os dias e que a psicanálise propõe. Cada vez que nos deparamos com a nossa fragilidade diante do tempo, abrimos espaço para a apropriação de nosso sentido de existência. Vencermos a resistência a nos acomodarmos escancara a possibilidade de adquirirmos coerência com os nossos valores mais íntimos. A sociedade atual nos empurra a nos acomodarmos a não existir, a vivermos escondidos atrás de uma imagem que não nos representa. Qualquer momento em que o amor provoca incômodo pode ser a oportunidade a revisarmos o que nos engaveta e nos aprisiona a uma servidão voluntária[iii].
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Cômoda: site Magazine Luiza |
Há uma confusão grande entre necessidade e valor, entre
querer e ser. Saber o que queremos pode ser bem simples e abrir um espaço para
a impulsividade e o imediatismo, saber quem somos é bem mais complexo, pois nos
confronta com os nossos valores. Nos incomodar com o que é cômodo pode fazer
toda a diferença nesse momento de mudança. Abrirmos as gavetas antigas e
observarmos o que não nos serve mais traz consciência. E, deixarmos para traz o
que é falso na acomodação é fundamental para seguirmos vivos. Eduardo Sued[iv],
96 anos expõe “Ousadias Cromáticas”. Um
exemplo do que estamos falando, ousadia aos 96 anos: abrir espaço para o
incômodo e criar diferença onde nos identificamos diferentes.
É
necessário não nos acomodarmos a indiferença diante dos humanos, nos incomodarmos
com a resistência à mudança e criarmos uma resistência de mudança. Ousarmos com amor.
Simone Engbrecht- psicanalista