Incômoda Acomodação

“Às vezes, o nosso destino parece com uma árvore frutífera no inverno. Como poderia, com uma aparência tão triste, podermos pensar que estes galhos hirtos e ramos secos de novo floresçam e dêem frutos na próxima primavera.” Johann Goethe

       No início dessa pandemia, era bem comum a ilusão de que o isolamento, a distância entre 2020 e 2019,  ou os prejuízos causados pelo vírus trariam uma transformação das pessoas, que todos teriam a oportunidade a serem mais humanos, mais conectados a coletividade e a fragilidade de nossa espécie. Porém, sabemos o quanto qualquer simples mudança é difícil. Resistimos a tudo, sejam mudanças propostas por um avanço tecnológico, sejam modificações necessárias a fim de convivermos com uma perda, ou, até mesmo, mudanças desejadas. A pandemia não trouxe mudanças de caráter em ninguém, talvez as pessoas tenham tomado consciência do quanto as pessoas  podem buscar um progresso acomodado à morte. Mas a solidariedade apareceu apenas na abertura das gavetas de cômodas de quem já a cultivava.

       

Foto: Reprodução

  Podemos percorrer a obra freudiana[i] através de vários eixos de estudo, iluminaremos aqui o conceito de repetição. Freud observou as repetições involuntárias no comportamento das histéricas, as repetições nas brincadeiras infantis e a repetição em sonhos traumáticos de pessoas que  sofreram na guerra. Ele foi se aproximando cada vez mais dos questionamentos sobre a nossa compulsão a repetir, como algo que pode ultrapassar nossos desejos conscientes; e  sobre os retrocessos diante da melhora em tratamento até formular o conceito de pulsão de morte em 1920[ii].

         A pulsão de morte é uma tendência inata a repetir  e a retornar a um estado anterior, a quietude de tensões, a zerar tudo. Compreendendo que a vida nos retira do Nirvana, precisamos estar atentos à acomodação ou a falsas mudanças.  Uma mudança de emprego, de cônjuge ou até mesmo de moradia, podem carregar uma tendência a resistir a uma mudança mais profunda. Se não é para termos mais sucesso, mostrarmos aos outros a nossa felicidade, nos apropriarmos de mais bens, adquirirmos força, quais seriam as mudanças que a psicanálise escutaria em nossos desejos?

         Reconhecimento de si é a mudança viva de todos os dias e que a psicanálise propõe. Cada vez que nos deparamos com a nossa fragilidade diante do tempo, abrimos espaço para a apropriação de nosso sentido de existência.  Vencermos a resistência a nos acomodarmos escancara a possibilidade de adquirirmos coerência com os nossos valores mais íntimos. A sociedade atual nos empurra a nos acomodarmos a não existir, a vivermos escondidos  atrás de uma imagem que não nos representa. Qualquer momento em que o amor provoca incômodo pode ser a oportunidade a revisarmos o que nos engaveta e nos aprisiona a uma servidão voluntária[iii].

Cômoda: site Magazine Luiza

         Há uma confusão grande entre necessidade e valor, entre querer e ser. Saber o que queremos pode ser bem simples e abrir um espaço para a impulsividade e o imediatismo, saber quem somos é bem mais complexo, pois nos confronta com os nossos valores. Nos incomodar com o que é cômodo pode fazer toda a diferença nesse momento de mudança. Abrirmos as gavetas antigas e observarmos o que não nos serve mais traz consciência. E, deixarmos para traz o que é falso na acomodação é fundamental para seguirmos vivos. Eduardo Sued[iv], 96 anos expõe “Ousadias Cromáticas”.  Um exemplo do que estamos falando, ousadia aos 96 anos: abrir espaço para o incômodo e criar diferença onde nos identificamos diferentes.

É necessário não nos acomodarmos a indiferença diante dos humanos, nos incomodarmos com a resistência à mudança e criarmos uma resistência de mudança.  Ousarmos com amor.

Simone Engbrecht- psicanalista  



[i] Sigmund Freud (1856-1939)- formulou a Psicanálise, uma teoria aberta e um método de investigação do psiquismo.

[ii] Além do Princípio do Prazer,

[iii] Discurso da Servidão Voluntária de Étienne de La Boettie.

[iv] Eduardo Sued, pintor, gravador, ilustrador, desenhista, vitralista e professor.

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