Envelhecer é um Privilégio

 

Algumas ideias sobre o privilégio de envelhecer podem inibir o prazer alcançado pelo tempo transformador das velhas formas do viver[i]. Quando a maturidade é considerada um prêmio de consolação pela decadência do corpo, envelhecer pode representar um tempo de ressentimento. Não há como insistir em negociar com o tempo. Não suportamos limites ou perdas acreditando que seremos recompensados por isso. A maturidade envolve furar a bolha de  comércio e competição que nos infantiliza.

Foto: Reprodução
Envelhecer é um privilégio alcançado pelos corpos que não morreram, porém, as vidas que buscam mais do que a sobrevivência precisam transformar as velhas formas de viver.  Amor é privilégio de maduros, conforme Drummond[ii]. Amamos em qualquer idade, por que seria então um privilégio somente dos maduros? A proposta desse texto é apresentar brevemente uma hipótese sobre a mudança em nossa forma de amar ao longo da vida[iii] e que é capaz de soltar as amarras do ressentimento.

No início da vida, o amor encontra-se fundido na necessidade de sobrevivência. O olhar e o reconhecimento do semelhante são fundamentais para o humano enquanto ele depende dos outros para sua nutrição, higiene e aquecimento. Por isso, a sensação de ser amado representa um dos primeiros alimentos para a autoestima. Ao longo da vida, no entanto, a capacidade amorosa se desprende da passividade de ser amado para que  amar se torne um verbo que encontre a voz ativa. O amor maduro é aquele que encontra tradução nos prazeres de ofício e pela realização de projetos não egoístas e não iludidos pelo espelho.

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A sociedade contemporânea dá valor à exterioridade e isso tem retardado o amadurecimento por duas vias: pela crença de que a responsabilidade por qualquer dificuldade seja sempre dos outros e pela busca de apagamento das marcas que o tempo produziu. Esse valor dado ao externo faz com que as pessoas tenham a sensação de que são vítimas de sua existência, por um lado, entregues a passividade da impotência e, de outro, ativamente focadas em desfazer a sua história, plastificando a sua aparência.

Associar a juventude ao belo pode estar relacionado ao desejo de ser amado e aplaudido, ou em tempos de redes sociais, de likes por imagens de suas atitudes. Talvez um corpo saudável de um idoso não seja visto como belo não somente por dar um alerta sobre a sua finitude, mas por trazer um ressentimento de outras finitudes não elaboradas. Quem modifica a sua maneira de amar não sente saudade da angústia adolescente pelo medo de ser excluído, nem sente  saudade de estar inseguro diante do julgamento das pessoas, ou saudade da sua arrogância frente aos riscos que não eram percebidos. Sentir saudade do tempo em que se era jovem implica em sentir falta de um tempo em que a imaturidade desprotegia a alma. A liberdade que o envelhecimento dispõe está em alcançar posições consistentes sobre si mesmo, na confiança em suas percepções da realidade e na  possibilidade de ouvir os outros sem se perder nas narrativas dos outros.

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O desenvolvimento da tecnologia abriu espaço para que o envelhecimento possa não ser sinônimo de adoecimento físico, porém se os alimentos da autoetima ainda forem os infantis, o avanço da tecnologia irá retardar não apenas o envelhecimento do corpo, mas o amadurecimento, e a saúde mental é que ficará comprometida.

Quem já viu frutas sendo congeladas, já percebeu que a sua aparência, consistência e sabor se modificam rapidamente ao retornarem a temperatura ambiente. Assim nos tornamos se desejarmos congelar o tempo.  Fazer as pazes com ele consiste em deixarmos a tristeza cicatrizar perdas e impulsionar o luto do que passou, a fim de nos  protegermos da melancolia do ressentimento.

Envelhecer é um privilégio, amadurecer é saber deixar o tempo transformar as velhas formas do viver.

Simone Engbrecht- psicanalista



[i] Referência à canção de Gilberto Gil, ,

[ii] O Amor e Seu Tempo: um poema de Carlos Drummond de Andrade de 1973.

[iii] Essa temática é explorada no livro da autora, O Amor não é Surdo de 2008.

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