Para que serve a Psicanálise?


Para que serve a Psicanálise?  Servir pode estar ligado à servidão, à submissão, ou à utilidade. A proposta dessa questão é refletir sobre a conseqüência de que um raciocínio comum sobre o proveito de qualquer coisa pode tornar alguém escravo. Um carro pode ser útil para facilitar a locomoção das pessoas, mas pode deixá-las dependentes do petróleo ou de alguma indústria que as impulsiona a comprá-lo.

Consultório de Freud no Freud Museum em Londres
Sigmund Freud esteve sempre muito ocupado com isto e, por esse motivo, preocupou-se muito com que Psicanálise não se tornasse uma visão de mundo, pois, se assim fosse, perderia a sua inquietação mais clara:  a falta de liberdade.  Já respondemos com isso, o outro sentido: a utilidade da Psicanálise consiste  na abertura do pensamento quando esse está aprisionado a repetições e a conclusões dogmáticas e explicativas. Porém, o conceito de liberdade é complexo e controverso. Ele descobriu que dentro de cada indivíduo existem desejos que não conseguiram ser satisfeitos e nem frustrados, pois não puderam se tornar suficientemente apropriados, persistindo como ressentidos,  re  sentidos.   A liberdade está em fazer escolhas, no interior daquelas que são possíveis, ou seja, aquelas que fazem parte das atitudes responsáveis de cada pessoa.  Diferenciar, porém, quais são as escolhas próprias do sujeito e o que pertence à realidade é bem complicado, pois aceitar os nossos limites a fim de movimentarmos a vida a partir deles é sempre um desafio.

 Escolhas possíveis, esse é um tema talvez tão complexo quanto o da liberdade, pois abre espaço para refletirmos sobre o impossível. Albert Einstein afirmou que algo só é impossível até que alguém prove o contrário. Um gênio, pois abriu espaço para o desconhecido. Nossa ideia aqui não é entrarmos em servidão a formulação de Einstein, mas compreendermos se o que formulamos como impossibilidades  faz parte de nossa intimidade ou da realidade.

A liberdade não consiste em realizarmos nossos desejos, mas em tomarmos atitudes que sejam coerentes com aqueles desejos íntimos pelos quais escolhemos lutar. A realidade existe e está dada além de nossas forças, cabe a nós escolhermos se queremos ou não contribuir com ações que buscam modificá-la, tendo clara a sintonia com a  humildade para aceitar que mudanças pretendidas podem não acontecer apesar dos nossos esforços.  É grande a diferença entre as nossos atos e o que eles visam. Somente as nossas atitudes podemos controlar, a conseqüência delas, porém, depende de muitos outros fatores. Portanto, a  liberdade está na escolha de atitudes coerentes com a pessoa que pretendemos ser.

 A Psicanálise está a serviço da apropriação de nossas ações e palavras alicerçadas na coerência com a nossa existência.   Somos um mar de ambivalências e de desejos contraditórios, cabe a nós escolhermos com qual deles queremos agir e nos apresentar. Porém, o efeito ou a interpretação que uma atitude  provoca nos outros não está sob nossa jurisdição. Queremos que alguém entenda o que pensamos, por exemplo, mas esperamos, ao mesmo tempo, não falar nada sobre a nossa intimidade. Dois desejos impossíveis de serem realizados simultaneamente, a não ser que a realidade contemplasse a existência de  pessoa que conseguisse ler pensamentos alheios, com possibilidades além de um humano comum. Ou seja, diante de muitos desejos é inevitável que cada pessoa crie em sua fantasia uma resolução mágica e ilusória que contemple a satisfação de desejos contraditórios, sem precisar realizar uma escolha. Sem valer-se dessas ilusões, os desejos só poderão ser sustentados nas escolhas de atitudes das pessoas capazes de promover seu desejo, apoiadas em suas palavras e expressões, ou seja, na liberdade de suas ações.   Ainda assim, pode ser que o seu interlocutor realize uma interpretação diferente daquela pretendida e essa é a parte que corresponde ao que ultrapassa a potência individual em um determinado momento. Lidar com as frustrações diante da realidade corresponde a uma nova liberdade de escolha: desistir diante de um fracasso ou insistir através de uma nova tentativa que contemple a mesma meta pretendida.
  
Por isso a Psicanálise está relacionada à liberdade, a liberdade de cada um diante de seus desejos confrontados pela realidade. Apropriar-se de suas contradições e escolher por qual caminho seguir em relação às suas atitudes é muito diferente de encarregar à realidade de tudo. É frustrante o confronto com a percepção da realidade, pois a liberdade não está dada pelo exterior, mas pelo interior de cada sujeito, ou seja, na luta diante do medo da realidade e na escolha de atitudes a partir disso. Há muitas pessoas presas a fantasias de que estão determinadas por causas externas, essa é uma escravidão pela qual a psicanálise luta contra. Portanto, a psicanálise luta contra a servidão, pois ela luta pela apropriação do bem mais precioso, sabermos quem somos e por qual sentido de existência nós respiramos e nos inspiramos. Alguém pode estar ameaçado concretamente nos seus direitos mais básicos, porém a sua liberdade consiste em não negociar a sua alma em função de nada.

Proprietários da realidade nunca os humanos serão, mas poderão tornar-se senhores de si mesmo, se puderem conhecer mais a respeito de sua alma. Esse é o registro de propriedade que a psicanálise busca e para isso está a serviço. E, quanto mais o sujeito estiver a serviço de si mesmo, menos estará servindo ao um desconhecido que apenas busca a servidão de pessoas através de um alívio sem escolha. 

Simone Engbrecht - psicanalista




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