Aprender com as Tartarugas



“As tartarugas conhecem as estradas melhor que os coelhos” Khalil Gibran

         Temos a impressão que, após a virada do milênio, todos correm em busca de uma evolução. Contraditoriamente, quanto mais se corre, mais se possui a sensação de que o tempo voa. A pressa em apenas desejar e chegar mais a frente não permite, muitas vezes, que os detalhes da vida possam ser contemplados e, então, contados pelo tempo. Lembramos desse paradoxo, antes do ano terminar a fim de observarmos, com o  vagar de uma tartaruga, esse momento interessante, sem realizarmos com ingenuidade uma interpretação de que basta o calendário mudar numericamente  para nos tornarmos seres mais desenvolvidos ou para decisões mágicas serem tomadas.
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Darwin foi responsável por uma segunda quebra na teoria antropocentrista, quando demonstrou que o homem pertence ao reino animal. Esse golpe já tinha sido dado por Copérnico ao descobrir que o Sol não gira em torno da Terra, mas vice-versa. Pequenos! Sim, somos pequenos humanos.  O Universo é bem maior. E a psicanálise produziu ainda uma terceira ferida narcísica[i] ao marcar a existência do Inconsciente[ii] a partir da  concepção de homem não senhor e nem centro da razão. Um astro iluminado não gira em torno de nós e nem mesmo é o centro do universo. E, mesmo com esforço, a evolução de um ser humano não é uma meta individual, porém a de uma espécie. Agora, a mais inquietante das feridas humanas: absorver as resistências a abandonar uma posição de centro para ingressar apenas em uma caminhada comum e desconhecida a nossa racionalidade.
            Há uma tendência precipitada pelas resistências à mudança a julgar e a comparar tudo, para que tudo possa ser logo compreendido e justificado a partir de um lugar cômodo e sem movimento.  Em pesquisa científica, descobrimos perguntas mais complexas quando  a investigação se dá a respeito do estranho, do incomum e, sendo assim, busca uma  novidade, sem apenas buscar provas para uma hipótese tornar-se tese.  Afirmar que as espécies evoluem para sobreviver implica em concordarmos que o que está vivo hoje é mais evoluído que espécies do passado ou que espécies em extinção, como as tartarugas, não estão evoluindo como deveriam a fim de garantir a sua sobrevivência. Questionamos aqui sobre o fato de que o final de uma trajetória seja mais evoluído que o seu início ou o seu meio. Questionamos o que significa evoluir.
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            A complexidade trazida pelo pensamento psicanalítico trouxe uma abertura, ou seja, uma nova diferença à linearidade marcada por ideias evolucionistas. Conhecer os caminhos e não apenas correr para o final é um comportamento em extinção, como as tartarugas. A paciência, a longevidade de uma existência, são características quase extintas pelo consumo efêmero, onde os lugares e as situações são apenas cenários de uma existência fútil, onde bactérias são seres vivos mais evoluídos por sobreviverem a alguns humanos.  A reflexão sobre o sentido de uma existência procura descobrir o que há no interior de uma experiência, o que se aprende e se transforma ao longo  da  vida.
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            Na atualidade, quando acontece a pergunta sobre o sentido da vida, é comum a resposta buscar uma utilidade para a vida, ou procurar o que dá prazer na própria existência. Essas duas soluções entendem sentido como a direção de uma estrada, assim, para onde ela vai. Se escutarmos, porém,  que sentido da vida poderia ser a maneira como são as curvas e os detalhes de uma estrada, vistos por um ponto único de vivência e de experiência criativa, poderemos, então, nos identificar melhor com esses animais em extinção, as queridas tartarugas.
            Considerar o homem um animal, mas manter uma ideia de que seja um animal evoluído comparado a outros significa manter uma ideia fechada, sustentada pelo julgamento e pela linearidade de comparações. A possibilidade amorosa dos humanos não precisa ser evoluída, útil para sobrevivência, ou necessária para chegar a um lugar mais reconhecido. Tartarugas possuem casco, nós humanos a criatividade. Não dá para comparar. Essa frase já é estranha, pois, muitas vezes, dizemos que não dá para comparar, exatamente porque comparamos e vimos uma imensa diferença evolutiva, ou do que é melhor ou pior. Deixar de lado a balança, a métrica, é bem difícil hoje, porque a pressa comanda que sejamos vencedores não se sabe nem do quê. Com paciência, é fundamental estarmos mais atentos ao presente, pois a noite de virada chega a cada final do dia.
 A criatividade e o amor aparecem quando se está sem direção, mas com um sentido em viver. A vida é inspiradora, ou seja, enche o nosso peito de ar, quando estamos atentos aos detalhes da estrada.  Ela, porém,  deixa jovens sem fôlego, mergulhados no vazio, quando escolhem o que irão estudar com um critério apenas voltado para o reconhecimento e ao mercado financeiro associado ao seu ofício, sem ar quando as pessoas preocupam-se em compartilhar imagens em rede, mais do que conversar, sem ar quando a fragilidade do corpo é percebida como a morte, quando o amadurecimento é visto como envelhecimento. A nossa fragilidade, as nossas frustrações, as nossas conversas são a trilha de nossa existência, estamos vivos quando o que existe nos toca e produz marcas que nos salvam de nos sentirmos vazios dentro de um casco.

Simone Engbrecht - psicanalista






[i] Ferida narcísica – refere-se a um conceito psicanalítico que desenvolve a concepção, baseada no mito de Narciso, de que a constituição do sujeito envolve inicialmente a ideia de que tudo possa ser o reflexo de si mesmo.
[ii] [ii] Inconsconsciente- conceito psicanalítico sobre a ideia que o psiquismo não é redutível ao que se pode facilmente tomar consciência.

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