As Crianças Acreditam Na Vida



“O homem chega à maturidade quando encara a vida com a mesma seriedade que uma criança encara uma brincadeira.Friedrich Nietzsche

As palavras das crianças emocionam os adultos de diversas maneiras. Tocam e chocam de verdade quando cutucam a criança que habita um coração que já pode estar mais duro com o tempo. Não é saudade de quem éramos que amolece as artérias, mas o encontro com nosso jeito de levar a vida mais leve e com mais entrega.
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Os familiares se emocionam quando uma criança pronuncia pela primeira vez um chamado que representa um nome, chama a mãe, o pai, nomeia apelidos ou usa formas peculiares para aqueles que estão mais próximos. As primeiras palavras ingressam como música aos ouvidos de quem se sente em um novo lugar: o de um amante sendo reconhecido. As crianças seguem encantando na vida pela pureza existente na novidade da vida, sendo elas de qualquer idade, estando, até mesmo, com 90 anos.
O humor alivia o desamparo: essa é afirmação do psicanalista Abrão Slavutsky que percorreu o tema da seriedade do humor com muita profundidade. Escreveu um livro sobre a seriedade do humor, onde retoma um tema caro a psicanálise, o contraditório que está presente no riso, onde uma fragilidade pode ser aliviada sem necessitar da seriedade de uma conclusão ou de uma teoria e, ao mesmo tempo, consegue perceber a dureza de um fato.

Tive o prazer de ler a carta que minha sobrinha, contando com sete anos de idade e a aquisição de maior habilidade na escrita, remeteu ao Papai Noel.  Dedicou sua lista a ele mostrando o que lhe seria entregue, quando ele chegasse a sua casa, era como um cardápio antecipado: Dou biscoitos e leite. Li a carta com a expectativa de saber o que ela desejava. A surpresa foi verificar que ela estava ocupada em receber bem o seu querido Noel. O olhar de uma criança é aberto ao mundo, porque está entregue a ele com curiosidade. A criança não imita, se coloca. Não há listas de presentes de outras crianças para copiar. Há a carta que Helena elaborou com o que somente ela considerou importante colocar. Na sua carta de amor, mostrou o que poderia oferecer: muita identidade.
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O humor nos encontra toda vez que resgatamos a nossa humildade benevolente diante da vida, toda vez que sabemos deixar detalhes sem importância não atrapalharem o essencial, toda vez que a criança, que mora dentro de nós, olha o mundo. Todos os que permanecem vivos envelhecem, mas nem todos aqueles que envelhecem conseguem amadurecer. Somente quem não despreza a inocência do seu olhar diante das desilusões da vida e persiste acreditando que doar-se ao outro é sério como a brincadeira de uma criança, consegue amadurecer e alegrar-se em envelhecer, pois é sinal de que segue vivo e adora viver.
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Nos inspiramos em Nietzsche, pois acreditamos que pessoas podem chorar por alegria ou dor, rir diante de comédias ou tragédias, morrer por morte morrida ou porque a vida perdeu a graça sem conseguir ser ter o espírito de uma criança diante dela. Existem interpretações sobre a precocidade da maturidade sexual hoje. Freud foi criticado por ter construído textos sobre as teorias sexuais infantis, e diferenciado sexo de sexualidade, pois alicerçou o método da Psicanálise  no amor de transferência[i], e desenvolveu todo o seu trabalho a partir dele. Na atualidade, percebemos que a resistência à psicanálise se deve à resistência ao amor. Pois, o amor nos faz amadurecer sem perder a liberdade de uma criança diante do mundo. O amor, enquanto ambivalente: amar e ser amado, amor e ódio e qualquer indiferença que contrarie a sua entrega abre espaço para o Inconsciente, que corresponde exatamente a possibilidade de contradições e complexidade.  
As crianças amam, porque suportam a ambivalência que existe dentro do amor, sua indiferença, sua raiva e até mesmo a falta de reciprocidade, pois acreditam na alegria de entregar-se a  vida e ao desconhecido. Podem oferecer biscoitos, leite, e carinho e conseguem dar o melhor de si, o seu amor a vida como ela é. Não porque ainda não foram decepcionadas, mas porque acreditam que as desilusões não serão maiores que ela mesma. Esse é o maior legado das crianças. As crianças podem ter morrido, sermos anciãos,  termos perdido filhos sem uma lógica muito clara em quem vai embora primeiro, mas lembremos todos do legado de cada uma delas: a sua visão de mundo com amor para dar.
Simone Engbrecht - psicanalista





[i] Amor de Transferência- a relação de repetição estabelece com o analista e que serve de base para a recordação e a elaboração do passado da pessoa 

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