Lágrimas para cicatrizar feridas



          A atualidade nos convoca a pensarmos sobre o conceito de tudo a fim de conseguirmos estabelecer limites, entre o que é assédio ou um elogio, entre o que é pegar ou namorar, entre o que é aceitar ou obedecer. Pretendemos neste texto recuperar a discussão sobre uma posição que parece não ter mais lugar na pressa deste início de milênio a fim de refletirmos sobre essa solicitação: o luto.
           Qualquer tristeza hoje é nomeada de depressão, porém nem toda emoção é patológica. Em 2001, ao escrever sobre esse tema[i], construí um capítulo chamado as lágrimas que cicatrizam com o objetivo de falar sobre o luto enquanto espaço para tristeza e para um recolhimento natural após uma perda. Seja essa a perda de um amor, de um momento de vida, de um emprego, de uma ilusão. Não é simples estabelecermos mudanças, elas demandam um abandono de um costume. E isso é natural e fundamental para que realmente a alegria com a vida possa também ocorrer.
          
Imagem da divulgação
do filme Divertida Mente
 
No filme Divertida Mente[ii], de maneira lúdica, as emoções são repensadas na forma de personagens no interior da cabeça de uma menina. Destacamos que a Raiva só não se alastrou mais quando a Tristeza deixou de ser ignorada. Observamos que hoje a tristeza, ao ser posta de lado enquanto emoção, e traduzida apenas por uma falta de ânimo para ações que demandam decisões ou iniciativa, não consegue mais regular a raiva. Diferenciamos aqui desânimo de tristeza. No desânimo, a emoção localizada é a raiva por uma frustração com a realidade. A tristeza corresponde a um sentimento elaborado na aceitação da impotência diante de uma situação cuja permanência ultrapassa a vontade de alguém. A percepção de que as pessoas não giram em torno de nós é duro à primeira vista, mas libertador à segunda. A tristeza é a responsável por essa modificação.
           
Foto: Reprodução
Antigamente, quando alguém perdia um ente querido, vestia preto como um sinal social de que estava em um período de luto. Hoje, após a morte de alguém, rapidamente é valorizado o  seu legado ou  é discutida a sua herança, sem intervalo para chorar por quem se foi. Não precisamos voltar  atrás nos hábitos, mas respeitemos o lugar das lágrimas para que possamos cicatrizar feridas passadas. Somente assim, constituíremos uma pele protetora capaz de diferenciar o que desejamos, sentimos e pensamos, de nossos atos. Alguém que não está constantemente alegre e precisando aparentar sucesso  tem a liberdade interna para lidar com a sua agressividade. Pois essa pode dar força para as atitudes sem violência se for equilibrada com as outras emoções. Principalmente, quando é possível se entristecer sem que isso seja tomado como um fracasso. Aí sim, realmente o vazio da depressão será diferenciado de um momento de amadurecimento.
            Estamos nesses últimos anos em uma transformação acelerada de referências e parâmetros de percepção de mundo. Nos decepcionar, nos entristecer, nos emocionar, faz parte dessa fase de crise enquanto passagem para um novo tempo. Fiquemos alertas, no entanto, a fim de que a negação de afetos não nos coloque num vazio destrutivo de uma melancolia que não poderá, então, cessar.

Simone Engbrecht - psicanalista





[i] ENGBRECHT, Simone. Aprendendo a lidar com a depressão. 4ed. São Leopoldo: Editora Sinodal. 2001.
[ii] Divertida Mente- filme de 2015 Pete Docter

Postagens mais visitadas deste blog

Ao Cair a Ficha, Escolhemos

Envelhecer é um Privilégio

A Adolescência da Humanidade