A ilusão do sentimento de culpa



Pode parecer contraditório um sentimento de culpa  aparecer na mesma frequência com que alguém se percebe frágil diante de uma situação, pois a concepção de culpa, em situações onde não há crime, consiste na confusão de que se é possuidor de uma força capaz de modificar o mundo e os outros. O sentimento de culpa dá a noção de que tudo é causado pela própria pessoa que carrega um  peso. Surge, portanto, ao mesmo tempo, uma ideia onipotente associada a uma sensação de impotência.
        
Foto: Reprodução
Diante da responsabilidade por nossas atitudes, somos seres sozinhos. Em 1927, Freud[i] escreveu sobre as maneiras de como a ilusão se constrói em uma forma comum utilizada para lidar  com o  fato de que somos seres desamparados, humanos. Por mais que qualquer um possa contar com alguém, um amigo, um parceiro ou um familiar, a sua liberdade está sempre marcada pela solidão diante de simples escolhas a tomar. Assumir o desamparo, sem vitimização, é uma conquista somente para os raros que não estão ancorados em uma servidão de um pensamento moral, mas não ético.
Quem não está livre não é porque está desamparado, mas se encontra incapaz de administrar na prática a si mesmo: um bebê, um apenado, uma pessoa declarada judicialmente interditada. Muitas pessoas não estão de verdade incapazes, mas se escondem nessa posição aprisionada a algumas circunstâncias, por se perceberem inaptas para resistirem à tentação da ilusão que algo ou alguém irá lhe fornecer um amparo aos seus valores mais íntimos. Sendo assim, não se sentem livres, mas com um sentimento de culpa provocado pela fantasia de que não são pessoas separadas umas das outras, mas unidas pela ilusão de servidão e de um comércio moral.  
A servidão apoiada na crença de que, ao não desagradar quem se ama, se conquista o amparo de amor necessário para lidar com a  fragilidade é tão ilusória quanto justificar  a tomada de uma atitude que desagrade a um grupo a partir da fundamentação na falha de alguém. Ninguém é consequência ou causa de ninguém, essa separação, sem dependência, nos convoca a refletirmos sobre a nossa solidão, tão difícil de sustentar, mas tão libertadora quando realizada.

O medo e a angústia de romper com a ilusão de não estarmos sozinhos são muito intensos, por isso, é preciso muita coragem para romper com uma servidão de lógica comercial presente em algumas relações.  
 Simone Engbrecht - psicanalista




[i] Sigmund Freud, pai da Psicanálise, escreveu um texto chamado O futuro de uma ilusão, discutindo o pensamento religioso, marcado pela ilusão de completude, e o livre, alicerçado na ignorância em relação ao futuro.

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