Escutar e Ouvir


Ao ouvirmos o que emociona o coração e não somente o que faz bem ao ouvido, escutamos uma canção muito além de sua letra. Tomaremos o clássico de  Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Eu sei que vou te amar[i], a fim de refletirmos sobre essa diferença. Como os poetas podem predizer o futuro, se, de outra forma, são tão humildes diante do destino? Como sabem com tanta certeza? Talvez porque criam muito além de uma utilização de palavras, encantam ao expressar um som que representa o muitos gostariam de dizer.
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A Interpretação dos Sonhos[ii] é um texto produzido na virada de 1900 e que investigou o que vai além da racionalidade de uma tradução simultânea de símbolos ou significados de elementos percebidos enquanto dormimos e que lembramos ao acordar. O método psicanalítico consiste em dominarmos um ouvido  apurado. Palavras em sequência podem ser pontuadas por diferentes formas com o objetivo de criar novos e redescobrir antigos caminhos na investigação do que está se passando dentro de cada um. A percepção de detalhes da vida pode mudar a posição diante dela. Escutar a conexão entre eles, através de outra costura, no entanto, pode modificar uma emoção.
Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver/A espera de viver ao lado teu/Por toda a minha vida. A palavra desventura nos inquietou nessa canção. Parece contraditório que esses poetas tivessem composto algo melancólico sobre o azar de espera por alguém. Essa seria uma leitura linear desses três versos.
Ao observarmos minuciosamente, notamos que a palavra viver se repete: ‘desventura de viver’ e ‘viver ao lado’. Nessa canção, a repetição marca a diferença desses tempos: ao escutarmos que o desejo de viver por toda a vida ao lado de alguém pode dar sentido a quem sofre a eterna desventura de viver, nos emocionamos. Alguém que sofre infortúnios os ultrapassa quando observa a sua paciência em desejar estar ao lado do seu amor. Por isso, cada volta do ser amado apaga a sua ausência. A desventura não corresponde a esperar por alguém,  de maneira alguma. A desventura é o que faz parte da vida como ela é, e a espera por amor pode retirar alguém do sofrimento. Podemos ouvir que a desventura está em viver a espera de alguém, ou escutar que o sofrimento da desventura de viver é marcado pela esperança de estar com alguém. Essa é a diferença entre ouvir e escutar.
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Escutar versos sem a racionalidade da lógica formal e linear amplia a possibilidade de interpretar o que ouvimos. Saber deixar estradas antigas, encontrando novas trilhas nos torna seguros de que iremos amar a vida colorida e florida por suas desventuras sofridas e os amores irão acontecer.
Simone Engbrecht - psicanalista





[i] Eu sei que vou te amar é uma canção de Vinicius de Moraes e Tom Jobim regravada por Maysa Mararazzo em 1959.
[ii] A Interpretação dos sonhos é um livro de Sigmund Freud considerado como marco do início da Psicanálise.

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