A paz é da conta de todos


         Pretendemos aqui marcar uma diferença fundamental: entre  vítima e  vitimização. Para tanto, nos inspiramos em uma frase de Denis Mukvege[i]: ‘a justiça é da conta de todo mundo’. E retomaremos algumas reflexões a partir da obra de Hannah Arendt[ii] e da teoria psicanalítica. Essa filósofa foi corajosa ao afirmar que a piedade era um instrumento cruel de violência. Ideia também presente nas entrelinhas da obra de Sigmund Freud[iii], que já havia teorizado, em 1920, sobre a existência, dentro de cada um de nós, de pulsão mortífera, capaz de tornar-se violenta quando não encontra um caminho na possibilidade de pensar reflexivamente.
        
Imagem: site Floricultura Tropical
 Mukvege é um médico dedicado à luta contra estupros em guerra. Ele compartilhou o prêmio com Nadia Murad, ativista dos direitos humanos da minoria yazidi e vítima de escravidão sexual. Eles nos enchem de esperança por representarem a paz em 2018. A paz foi localizada contemporaneamente a partir daqueles que reconhecem um sujeito e não, uma vítima no centro da violência, ou seja, na responsabilidade que cada um possui diante do sofrimento. Diante do horror vivenciado, Nadia não se vitimizou e não sucumbiu ao lugar de inexistência no qual foi colocada, mas possui esperança apoiada no não ao horror, escrevendo um livro que possui no título  a última. O seu foco está no futuro em paz e não uma prisão ao passado.
         A piedade é cruel, pois reforça a desigualdade[iv]. O sentimento de culpa revive também o mal, porque marca o castigo e não a responsabilidade construtiva para com um futuro. O fim da violência não se faz com a guerra e sim com um ponto final. Ter sido a última vítima significa buscar um ponto final à violência e ao passado e não deslocar um lugar vitimizado como autorização para um ressentimento expresso numa maldade renovada no presente.
Hannah Arendt
Alguém culpado ou vitimizado enxerga o mundo aos olhos da banalidade do mal, porque localiza a responsabilidade de cada um fora de si mesmo. O culpado localiza o castigo ou a piedade como um pagamento de sua dívida alicerçada em uma visão onipotente que segue anulando a existência de sujeitos responsáveis por si mesmo. Mas o futuro não salda essas dívidas. O vitimizado, da mesma forma, procura através de uma vingança velada, expressar o seu re- sentimento de ódio por seu passado. Quando Mukvege nos entrega essa frase diante de seu exemplo de atitude, mostra que lutar a favor da paz significa buscar justiça responsabilizando a todos pelo que tem a dar e não a pagar: a doação aos ideais é da conta de todos. Quando cada um reflete sobre que é mortífero dentro de si mesmo, consegue responsabilizar-se pela paz e não autorizar-se à violência contra os outros ou a si mesmo. Vítimas dizem que são as últimas, já a vitimização dá abertura a um lugar impossibilitado pela ausência de reflexão. Atos como o de Mukvege e Murad buscam a expressão da interrupção da violência marcada pelo cuidado e pela palavra. A paz é da conta de todos.
Simone Engbrecht - psicanalista




[i] Denis Mulvege: ganhador do Prêmio Nobel da Paz 2018, juntamente com Nadia Murad.
[ii] Hannah Arendt- filósofa alemã criadora da expressão banalidade do mal em seu livro Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, publicado em 1963.
[iii] Sigmund Freud- fundador da psicanálise.
[iv] Piedade é cruel- ideia de Hannah Arendt.

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