A paz é da conta de todos
Pretendemos aqui marcar uma
diferença fundamental: entre vítima e vitimização. Para tanto, nos inspiramos em uma
frase de Denis Mukvege[i]:
‘a justiça é da conta de todo mundo’.
E retomaremos algumas reflexões a partir da obra de Hannah Arendt[ii]
e da teoria psicanalítica. Essa filósofa foi corajosa ao afirmar que a piedade
era um instrumento cruel de violência. Ideia também presente nas entrelinhas da
obra de Sigmund Freud[iii],
que já havia teorizado, em 1920, sobre a existência, dentro de cada um de nós, de
pulsão mortífera, capaz de tornar-se violenta quando não encontra um caminho na
possibilidade de pensar reflexivamente.
Imagem: site Floricultura Tropical |
A piedade é cruel, pois reforça a desigualdade[iv].
O sentimento de culpa revive também o mal, porque marca o castigo e não a
responsabilidade construtiva para com um futuro. O fim da violência não se faz
com a guerra e sim com um ponto final. Ter sido a última vítima significa
buscar um ponto final à violência e ao passado e não deslocar um lugar
vitimizado como autorização para um ressentimento expresso numa maldade
renovada no presente.
Hannah Arendt |
Alguém
culpado ou vitimizado enxerga o mundo aos olhos da banalidade do mal, porque
localiza a responsabilidade de cada um fora de si mesmo. O culpado localiza o
castigo ou a piedade como um pagamento de sua dívida alicerçada em uma visão
onipotente que segue anulando a existência de sujeitos responsáveis por si
mesmo. Mas o futuro não salda essas dívidas. O vitimizado, da mesma forma,
procura através de uma vingança velada, expressar o seu re- sentimento de ódio
por seu passado. Quando Mukvege nos entrega essa frase diante de seu exemplo de
atitude, mostra que lutar a favor da paz significa buscar justiça
responsabilizando a todos pelo que tem a dar e não a pagar: a doação aos ideais
é da conta de todos. Quando cada um reflete sobre que é mortífero dentro de si
mesmo, consegue responsabilizar-se pela paz e não autorizar-se à violência
contra os outros ou a si mesmo. Vítimas dizem que são as últimas, já a
vitimização dá abertura a um lugar impossibilitado pela ausência de reflexão. Atos
como o de Mukvege e Murad buscam a expressão da interrupção da violência
marcada pelo cuidado e pela palavra. A paz é da conta de todos.
Simone Engbrecht - psicanalista
[i]
Denis Mulvege: ganhador do Prêmio Nobel da Paz 2018, juntamente com Nadia
Murad.
[ii]
Hannah Arendt- filósofa alemã criadora da expressão banalidade do mal em seu livro Eichmann em Jerusalém, um relato
sobre a banalidade do mal, publicado em 1963.
[iii]
Sigmund Freud- fundador da psicanálise.
[iv]
Piedade é cruel- ideia de Hannah Arendt.