Casamento por herança


Só um ser finito herda” formulação de Jacques Derrida[i] a fim de dialogar sobre o quanto a fidelidade a uma herança corresponde a não recebê-la como totalidade, portanto, a ser-lhe infiel. Aqui observamos o sentido que pretendemos empregar nesse texto a fidelidade, não delineada pelo engano, mas encontrando sentido no não cumprimento de uma formulação em obediência cega, por ser essa destrutiva. Brevemente, iremos formular algumas reflexões sobre qual é a nossa infidelidade, quanto ao herdado de gerações anteriores, no que se refere ao casamento. A nossa fidelidade acontece se não formos obedientes.
Imagem: site Mansão Colina
            Sigmund Freud rompeu com a ideia de que a sexualidade era sinônimo de sexo, pois ampliou o tema da busca pelo prazer que não é traduzido por uma finalidade reprodutiva. Essa concepção possibilitou, portanto, que alívio de tensões e felicidade se tornassem temas cada vez mais distintos e houvessem  questionamentos sobre o amor.  
            Os casais, na nossa cultura, deixaram de se diferenciar por complementariedade. As mulheres deixaram de exercer tarefas exclusivamente domésticas e o homem passou a ter um outro olhar sobre o espaço privado. Muito mais do que uma discussão de gênero, queremos iluminar aqui a modificação de papéis que eram definidos por uma geração anterior. Quando os lugares de cada  um já estavam assegurados por padrões de convivência bem claros, qualquer desejo que transgredisse os padrões era visto como agressivo.
            Herdar, conforme o dicionário Aurélio, significa tanto receber quanto deixar por herança. É aqui que parece que nosso tempo criou uma nova possibilidade para lidar com a destrutividade. Pois, não basta obedecer à história e reproduzir esquemas de comportamento, para herdarmos a ética. Se a sexualidade na convivência hoje possui maior diversidade em sua expressão, ela  tanto criou uma maior possibilidade de caminhos que  ultrapassam o uso de alguém como necessidade, quanto nos faz refletir sobre o que entregamos ao outro. A sexualidade nasce da ética e não da moral. Se antes um casamento era estabelecido pela obediência à moralidade. Hoje, sabemos que o submetimento, por responsabilizar apenas terceiros, é a marca da  destrutividade argumentada na repetição ao passado que já se foi. O amor, enquanto herança recebida, tem a potência do que a finitude produz. Só o ser finito herda, pois a nossa finitude está onde não estamos: nos outros.
Imagem: site Navarro Florista
            A parceria descoberta na fidelidade ao amor torna um encontro único e fértil, pois a sexualidade presente no seu interior não acontece para reproduzir alívios egoístas, marcados pelo ressentimento a gerações anteriores, e nem estabelecida pela obediência à moral. Herdar o amor compreende em apropriar-se desse verbo, ou seja, no bem deixado pela marca da infidelidade à obediência destrutiva e pela fidelidade à memória de ser cúmplice de um desejo de quem veio antes de nós,  transcender  o seu momento.  A esperança de um futuro com amor liberta, pois nos torna herdeiros infiéis a nossos antepassados e fiéis ao que nos deixaram, pois recebemos a condição de reflexão sobre o passado, sem uma servidão ao mesmo.
Simone Engbrecht - psicanalista  




[i] Jacques Derrida no livro De que amanhã, diálogo... escrito em 2004 com Elisabeth Roudinesco.

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