Descobertas que ultrapassam um julgamento
Não é
raro alguém dizer que não consegue aceitar
uma situação na qual a sua impotência diante da mesma é evidente. Podemos dizer
sim ou não alguma coisa somente quando possuímos escolha. Há uma
resistência em transformarmos o ponto final marcado por uma impossibilidade em um ponto de partida para mudanças. Porque está, sempre presente, uma
raiz de onipotência alimentada pela ânsia de mudar os outros. Sendo assim, algumas pessoas possuem dificuldade em pensar
sobre o momento em que vivem, no presente, pois ainda buscam julgar o que já
está posto nos outros e não corresponde ao que gostaria, com a expectativa que ainda isso se modifique. Carregam, então, pedras sem saber, e encontram-se cansadas ao final
do dia.
Foto: Reprodução |
O
pensamento judificativo é útil somente quando é necessário realizar uma
escolha. Estabelecer critérios delimitados pelo passado ou pelo futuro e
posicionar-se. Um juiz torna esse o seu ofício, uma estilista utiliza critérios
estéticos a fim de optar por um estilo. Entretanto, julgar o gosto cotidiano
diante de qualquer detalhe percebido pode ser estressante. Raciocínios ‘grenalizados’[i]
podem tornar-se uma repetição estéril. O tempo é o maior alvo desse ataque,
seja ele encarado como condição climática e alvo de crítica nos encontros de
elevador; seja ele marcado pela sua passagem e acorrentado à nostalgia de uma
época que ficou para trás.
A
impotência diante do relógio ou dos ventos não está na cartela de nossas
escolhas. É algo inevitável. Ninguém nos pergunta: queres envelhecer? Queres
que chova agora? Simplesmente acontece. O
amor amadurece na aquisição de percepção do abismo existente entre o que faz
parte do impossível e do seus desejos e localiza as potências de cada um. O prazer de alguém com a sua entrega é
adquirido a partir do amor como possibilidade de pensamento reflexivo no tempo
presente. Quando alguém pensa sem
julgamento, pode descobrir as novidades recheadas de conteúdo. Não é possível
ler uma frase dando atenção ao mesmo tempo ao conteúdo e a fonte[ii]
da letra empregada, por exemplo. Em
relação a essa última, se estabelece um julgamento: bela ou não, simples ou
não, conhecida ou não. Mas enquanto se observa a beleza das letras, o conteúdo
não fica compreendido. No amor, a estética é parcial, pois o que importa é o
que é possível perceber como novas conexões potentes dentro de cada caminho de pensamento criativo.
Imagem: site Canal Clima |
O amor cria possibilidades em quem o possui
dentro de si, pois ultrapassou o campo do ressentimento. O amor não é um oposto
ao ressentimento, pois há nele uma certa repetição. Mas quem transcende a uma
tentativa natural vingativa de recuperar algo que não existe, uma onipotência
imaginária, liberta-se da condenação que aprisiona.
O ódio
faz parte do amor enquanto componente de sua ambivalência, mas pode ser
expresso em atos apaixonados quando o amor ainda obedece acusações nascidas em
julgamentos. Julgar e condenar as próprias atitudes ou as alheias só possui
potência quando está alicerçada em mudanças para o futuro. O pensamento
judificativo, quando cria aliança com a queixa para somente descarregar o ódio
no presente, não é somente estéril, mas destrutivo. Ele pode produzir uma
cegueira branca[iii].
Simone Engbrecht -
psicanalista
[i]
Grenalizar- termo utilizado no RS para expressar a rivalidade em situações fora
do futebol, porém, como se estivessem divididos por torcidas de times.
[ii]
Fonte: em informática, significa o conjunto de caracteres com o mesmo estilo e
tamanho.
[iii]
Cegueira branca- termo que o escritor José Saramago utiliza no livro Ensaio sobre a cegueira quando os
problemas da sociedade se intensificam de tal forma que o civilizado se torna
primitivo.