Vida como bem alienável- parte II[i]


Nossa vida não pertence aos acontecimentos ou às aparências de uma vida, mas pertence aos valores que reconhecemos como apenas nossos e que pulsam por serem experimentados. Nossos valores são os bens não alienáveis que construímos[ii] ao longo da construção da história da qual nomeamos como a nossa.
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É bem recente a aquisição de alguns direitos de cidadã comum para as mulheres em nossa sociedade. Por exemplo, somente após 1973, uma mulher adquiriu possibilidade de crédito e possui direito a se responsabilizar por uma dívida simples por uma compra qualquer. É importante refletirmos sobre os efeitos dessa alienação social ainda presente hoje, demarcando que a aquisição sobre a posse de si mesmo vai muito além de uma condição instituída pela cultura.
Tanto o nosso corpo, quanto os nossos pensamentos e sentimentos vão se tornando propriedade do nosso Eu à medida  que, ao cuidarmos deles, criamos autonomia para realizarmos escolhas. Desde as atitudes mais simples, como o que iremos comer, até as mais complexas, como o que faremos ou se faremos algo a partir do que  escutamos de um sentimento, está a nossa liberdade de proprietários de uma existência.
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Em situações de fragilidade extrema de uns, outros são responsáveis pela vida. Médicos, bombeiros, profissionais de saúde salvam vidas. Uma situação similar é a de um bebê que não sobrevive sem o auxílio de um adulto. Pontuamos, no entanto, que após adquirir uma noção de existência, o corpo pode estar frágil e dependente em diversos momentos, mas o psiquismo passa a fazer parte de uma aquisição inalienável, pois carrega os valores mais íntimos de uma pessoa.
A liberdade de alguém não está em suas atitudes, mas nas intenções das mesmas. As mulheres adquiriram direitos de cidadania, porém muito antes de 1973, muitas mulheres se sentiam livres para pensar por si mesmas e, atualmente, muitas depositam nos acontecimentos o motivo direto de suas ações. Lembramos, então, que deixar uma posição alienada é um desafio individual de cada um, homem ou mulher. O desafio de tornar-se alguém que não deposita nos outros os valores que adquiriu. Não basta a história coletiva para que alguém possua o seu caminho.
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O tempo pode deixar a visão de mundo de cada pessoa mais coerente para si, pois a fragilidade da vida vai se tornando cada vez mais nítida. Perceber a fragilidade não torna alguém mais dependente, pois ela é o acontecimento; a autonomia provém do que fazemos com os valores que possuímos em nosso interior. Para amar, basta um olhar e tornar-se  quem se pretende ser e não o que se pretende ter. 
Simone Engbrecht - psicanalista




[i] Esse texto pretende seguir o desenvolvimento daquele publicado no dia 04/02/19.
[ii] No Direito, alienação corresponde ao processo de transferência de domínio de bens de um indivíduo para terceiros, utilizamos essa compreensão como uma metáfora.

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