Vida como bem alienável[i]


Alienação é um termo utilizado em várias disciplinas[ii]. No Direito, alienação corresponde ao processo de transferência de domínio de bens de um indivíduo para terceiros. Utilizaremos esse eixo como um apoio metafórico para as nossas associações psicanalíticas nesse momento.
        
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Cada vez é mais comum observarmos as pessoas atribuindo aos acontecimentos o motivo de seu sofrimento[iii]. Freud[iv] começou as suas investigações através de uma teoria do trauma que se sustentava nessa premissa. Após a descoberta do Inconsciente, e o surgimento da Psicanálise, esse raciocínio simplista e causal foi abandonado a fim de ampliar a complexidade do pensamento e libertar alguém das repetições. O domínio de si mesmo através da psicanálise não é proveniente do controle e nem de explicações teóricas, mas da possibilidade de uma definição melhor de limites de uma propriedade.
         Afirmar, por exemplo, que um crime passional, do ponto de vista emocional, foi causado por uma traição, parte de uma hipótese que um acontecimento provocou uma atitude. Entendemos, porém, que a atitude foi tomada a partir da falta de domínio de uma pessoa. Essa compreensão não é uma justificativa para uma isenção de culpa, ao contrário, é uma indagação sobre o que falhou na possibilidade de responsabilidade de alguém sobre si mesmo.
         A proposta de desalienação consiste em marcar com clareza uma sutil diferença: entre os fatos e os efeitos dos mesmos em cada um. São os últimos que precisam ser apropriados através do conhecimento a partir de uma investigação. Isso é  muito mais complexo do que repetir uma alienação do tipo: estou assim porque isso aconteceu na minha história, estou assim porque Fulano fez tal coisa, estou assim porque estou com raiva, estou assim porque estou triste.
         Os sentimentos e os fatos não acontecem por escolha, mas o que é realizado a partir deles é que consiste na grande diferença entre o que pertence ao espaço do singular e o que apenas é necessário aceitar como dado. Buscar uma forma de  domínio do que nos cerca, assim como do que sentimos, são missões impossíveis. Tentar mudar a realidade que já está posta, a mente de outras pessoas, ou mesmo o que sentimos porque não somos amebas, serão sempre como o nome diz: tentativas.  A Psicanálise propõe a autonomia de cada um diante da vida, ou seja: como ponto de partida para um território de posse.
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São os sujeitos que possuem sentimentos e não os sentimentos que possuem pessoas. Administrar a vida e as atitudes que se toma diante dela envolve a complexidade de valores aos quais assinamos embaixo como nossos. A coerência com quem somos está nessa relação: entre as atitudes e os valores aos quais que escolhemos atender.
 Alguém movimentar-se, escutando que possui perspectivas plurais diante dos fatos, amplia a possibilidade de movimento em seu território de domínio. Interromper a transferência que entrega ao outro, presente ou ausente (pois fez parte de sua história), a propriedade de si consiste no processo de tratamento psicanalítico. Alguém que diz que se preocupa demasiadamente com a opinião dos outros, percebe que a sua opinião não está suficientemente apropriada, pois entregou ao outro o seu bem: essa é a ideia de alienação.
Estarmos em coerência com os nossos desejos que reapresentam nossos valores mais profundos nos torna senhores de nossas atitudes. O nosso bem vital está na possibilidade da propriedade de sermos a pessoa mais coerente com aquilo que escolhemos ser e não o que acreditamos que o destino nos forjou. Sairmos da alienação nos torna seres vivos e humanos, respeitosos de nossos limites, ou seja, daquilo que não mudamos nos outros, mesmo que a nossa vaidade assim almeje.  
Nossa vida não pertence aos acontecimentos, aos valores dos outros e às aparências de uma vida, mas pertence aos valores que reconhecemos como apenas nossos e que pulsam por serem experimentados.
Simone Engbrecht - psicanalista




[i] Pretendemos desenvolver mais ideias desse texto em outros sob o mesmo título.
[ii] Estudado pelo antropólogo Foucault em História da Loucura, também formulado como conceito psicanalítico na obra de Lacan.
[iii] Esse é resultado de pesquisa de Didier Fassin e Richard Rechtmann no livro The empire of trauma.  
[iv] Sigmund Freud nas primeiras investigações sobre a histeria em 1890.

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