Vida como bem alienável[i]
Alienação
é um termo utilizado em várias disciplinas[ii].
No Direito, alienação corresponde ao processo de transferência de domínio de
bens de um indivíduo para terceiros. Utilizaremos esse eixo como um apoio
metafórico para as nossas associações psicanalíticas nesse momento.
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Afirmar, por exemplo, que um crime passional, do ponto de
vista emocional, foi causado por uma traição, parte de uma hipótese que um
acontecimento provocou uma atitude. Entendemos, porém, que a atitude foi tomada
a partir da falta de domínio de uma pessoa. Essa compreensão não é uma justificativa
para uma isenção de culpa, ao contrário, é uma indagação sobre o que falhou na
possibilidade de responsabilidade de alguém sobre si mesmo.
A proposta de desalienação consiste em marcar com clareza
uma sutil diferença: entre os fatos e os efeitos dos mesmos em cada um. São os
últimos que precisam ser apropriados através do conhecimento a partir de uma
investigação. Isso é muito mais complexo
do que repetir uma alienação do tipo: estou assim porque isso aconteceu na
minha história, estou assim porque Fulano fez tal coisa, estou assim porque
estou com raiva, estou assim porque estou triste.
Os sentimentos e os fatos não acontecem por escolha, mas o
que é realizado a partir deles é que consiste na grande diferença entre o que
pertence ao espaço do singular e o que apenas é necessário aceitar como dado. Buscar
uma forma de domínio do que nos cerca,
assim como do que sentimos, são missões impossíveis. Tentar mudar a realidade
que já está posta, a mente de outras pessoas, ou mesmo o que sentimos porque
não somos amebas, serão sempre como o nome diz: tentativas. A Psicanálise propõe a autonomia de cada um
diante da vida, ou seja: como ponto de partida para um território de posse.
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São os
sujeitos que possuem sentimentos e não os sentimentos que possuem pessoas.
Administrar a vida e as atitudes que se toma diante dela envolve a complexidade
de valores aos quais assinamos embaixo como nossos. A coerência com quem somos
está nessa relação: entre as atitudes e os valores aos quais que escolhemos
atender.
Alguém movimentar-se, escutando que possui
perspectivas plurais diante dos fatos, amplia a possibilidade de movimento em
seu território de domínio. Interromper a transferência que entrega ao outro,
presente ou ausente (pois fez parte de sua história), a propriedade de si
consiste no processo de tratamento psicanalítico. Alguém que diz que se
preocupa demasiadamente com a opinião dos outros, percebe que a sua opinião não
está suficientemente apropriada, pois entregou ao outro o seu bem: essa é a
ideia de alienação.
Estarmos
em coerência com os nossos desejos que reapresentam nossos valores mais
profundos nos torna senhores de nossas atitudes. O nosso bem vital está na
possibilidade da propriedade de sermos a pessoa mais coerente com aquilo que
escolhemos ser e não o que acreditamos que o destino nos forjou. Sairmos da
alienação nos torna seres vivos e humanos, respeitosos de nossos limites, ou
seja, daquilo que não mudamos nos outros, mesmo que a nossa vaidade assim
almeje.
Nossa
vida não pertence aos acontecimentos, aos valores dos outros e às aparências de
uma vida, mas pertence aos valores que reconhecemos como apenas nossos e que
pulsam por serem experimentados.
Simone Engbrecht - psicanalista
[i] Pretendemos desenvolver
mais ideias desse texto em outros sob o mesmo título.
[ii] Estudado pelo
antropólogo Foucault em História da
Loucura, também formulado como conceito
psicanalítico na obra de Lacan.
[iii] Esse é resultado de
pesquisa de Didier Fassin e Richard Rechtmann no livro The empire of trauma.
[iv] Sigmund Freud nas
primeiras investigações sobre a histeria em 1890.