A família e a força das relações


        Quando escutamos que a concepção de família se modificou na cultura contemporânea em função de uma mudança advinda do reconhecimento de novos enlaces, percebemos que são muitos aqueles que estudam diferentes configurações familiares. A intenção, nesse momento, não é refletir pela via das novas formas de união, porém questionar sobre o que se mantém mesmo que aconteçam separações, sejam elas, estabelecidas por divórcios ou por distâncias concretas entre as pessoas. Uma resposta simples que seria o Amor, porém algumas pessoas temem afastamento, pois se sentem condenados a essa premissa.
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Uma inquietação pode vir quando a etimologia da palavra ‘família’ nos é apresentada. No século XVI, famulus, do lalim, significava ao grupo de escravos ligados a uma grande personalidade[i]. Com o advento da ideia de propriedade, as famílias passaram a possuir uma conotação de ancestralidade e posse de bens. Seja sob a ótica jurídica, antropológica ou sociológica, o estudo sobre essa instituição perpassa o sentido de grupo e é a ele a que nos iremos remeter.  
Há uma diferença entre ser colega de trabalho ou de estudo de alguém e de ser amigo de uma pessoa que circunstancialmente conviveu conosco. A amizade é o amor que transcende às situações de proximidade. Um grupo é formado por ideais comuns, inclusive aqueles que estão a serviço uma utilização individual e egoísta, grupos mafiosos são o exemplo disso. Há muitas pessoas que não possuem vínculo emocional entre si, mas almejam um mesmo ideal e se sentem identificadas e amparadas quando pertencem a uma causa comum.
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São muitos aqueles que entendem que, quando os casais se separam, os filhos continuam os unindo, há tantos outros que fazem disso um uso. Mas, também acontece que alguns filhos, ou mesmo irmãos, não constroem vínculos profundos com aqueles com quem possuem laços sanguíneos. Por outro lado, alguns casais, mesmo após um rompimento de um casamento, e sem filhos, seguem com uma ligação construída por sua história comum.
Perceber que o nosso amadurecimento nasce alicerçado à maturidade corpórea e  se torna independente dela é tão importante para as reflexões que temos estabelecido sobre envelhecimento, como ampliarmos as reflexões sobre a liberdade que alcançamos, quando, mesmo percebendo a realidade, não é ela que nos determina[ii].
O motivo pelo qual cuidarmos de um ente da família, por exemplo, estabelece o abismo entre o que pretendemos apresentar aqui: alguns se sentem obrigados por convenções, outros se sentem livres para escolher a partir de seus valores. Afirmar apenas que a nossa família é constituída por aqueles que gostamos, por amigos a quem queremos bem, pode encobrir um egoísmo disfarçado pela justificativa de que liberdade é realizar apenas o que se quer. Observar que relações que nos constituíram formaram construções duradouras alcança a possibilidade de nos questionarmos indefinidamente sobre quem pretendemos nos tornar e a quem desejamos transmitir a nossa herança amorosa.
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Responsabilizarmo-nos pela liberdade da descoberta de que não somos escravos, nem prisioneiros, implica em nos inserirmos nas relações de maneira a trabalharmos contrariamente a nossa natureza possessiva, a qual fomos assujeitados quando ainda éramos concretamente indefesos.
Mudanças familiares são bem vindas para que a força do amor possa se fazer presente onde não há submissão[iii]. Submissão ocorre quando há uma missão abaixo dela. Estarmos abaixo e imersos a uma necessidade autoconservativa de reconhecimento pode infiltrar abusos de uma sociedade que procura seres imaturos que se aliviam através de imagens de felicidade, como uma fotografia de pais e filhos correspondendo a uma família em propaganda de margarina. Um fake que não nutre ninguém. Nos transformarmos pelos vínculos com os grupos que nos construíram implica em uma atitude de cuidado com aqueles com os quais escolhemos dedicar o nosso bem mais precioso: o nosso tempo. A família é construída por aquelas pessoas que nos alimentam de fendas que nos impulsionam a refletir sobre a nossa essência.
Simone Engbrecht - psicanalista




[i] Segundo José Pedro Machado - Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa.
[ii]Em psicanálise, Freud, ao desenvolver o conceito de sexualidade, entendeu que através de necessidades autoconservativas, como a alimentação, utiliza o corpo como uma função de apoio para o desenvolvimento da sexualidade que se torna autônoma secundariamente.
[iii] Essa ideia foi desenvolvida no texto ‘A autonomia é ética’ nesse blog em 11/03/2018.

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