Maternidade na contemporaneidade
Para
começar a conversa sobre maternidade na contemporaneidade,
inicio com uma definição de filho. Definição essa, nada mais nada menos que de
Saramago: “ Filho é um ser que nos foi
emprestado para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de
como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de
aprendermos a ter coragem. Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que
alguém pode ter, porque é se expor a todo tipo de dor, principalmente da
incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado. Perder?
Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo.”
Foto: Reprodução |
A
maternidade ou a paternidade se faz através da separação. A primeira delas acontece no nascimento. Na gravidez,
basta obedecer às ordens médicas ou daquelas pessoas mais experientes para que
pais e mães sigam com segurança a sensação de estarem fazendo o melhor que
podem. Ao nascer, regras não bastam. Um pequeno ser já vive num outro corpo e
inicia a constatação de que existe um outro
ser, voluntarioso, no qual pai e mãe sentem responsabilidade, mas sem
registro de propriedade. Realmente um aluguel. Responsabilidade de cuidar, mas
sem ter domínio. Talvez esse seja o tema que a contemporaneidade mais tenha
aberto caminhos de possibilidade. Amar um filho por desejo e não para se tornar
pai ou mãe.
Não é
porque o mito do instinto materno foi questionado pela psicanálise que a
temática da ambivalência ainda não provoque culpa atualmente[i].
No século passado, tanto o casamento era uma ordem a seguir como ter filhos
podia ser comparado a um ritual de passagem a adultez. Esses ainda são
fantasmas presentes. Há uma variedade concreta de possibilidades subjetivas,
porém, diante da coragem necessária para realizar escolhas, a obediência pode
ainda ser um esconderijo baseado em modelos herdados.
Talvez
há não muito tempo atrás, os pais se separavam dos filhos a partir de situações
concretas, mas possuíam a segurança de que eles estariam sempre ligados a eles
por laços de sangue que moralizavam relações. Porém, assim como não há instinto
materno, não há instinto filial. Filhos estão livres para separar-se dos pais quando
são amados. Em liberdade, nasce o desejo. Amor sem comércio, como já
trabalhamos em tantos outros textos, compreende o abandono do lago que nos
reflete, e separa a moral da ética. Amar por ética e não por obediência foi um
caminho aberto pelo contemporâneo.
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Mães
separam-se do lago de Narciso toda vez que se tornam a maternidade presente em
sua feminilidade. Filhos vão para escola, se machucam sem que elas estejam
presentes, fazem suas primeiras escolhas amorosas, segundas, definem a sua
identidade sexual, profissional. Uma saída de casa envolve hoje muito mais do
que a independência ou a autonomia dos filhos, mas uma aprendizagem por
parte dos pais em relação ao que foi um,
então, empréstimo.
Separação
a partir de um empréstimo é devolução e não perda. Devolver filhos ao mundo é saber deixar alguém sem perder. Como
canta Herbert Vianna: saber amar é saber deixar alguém te amar. Dar liberdade
ao outro não é desampará-lo, mas ter segurança de que o que entregamos é uma
devolução, um crédito, uma fiança em confiança e não uma dívida aberta a partir
de uma carência.
O Amor
em 2019 morre quando necessita de prisões de obediência a convenções, pois ele
possui asas maiores e deseja vôos mais longos.
Simone Engbrecht- psicanalista
Simone Engbrecht- psicanalista
[i] Temática apresentada pela filósofa Elisabeth
Badinter em inúmeros trabalhos, entre eles Um amor conquistado: o mito do Amor materno
(2009).