Rituais e rotinas


         É incrível, mas mesmo ainda vivendo plenamente no interior de uma sociedade do espetáculo[i], alguns rituais foram perdidos com a passagem do tempo. Se, por um lado, em algumas cerimônias de casamentos, os rituais foram tão enaltecidos por terem sido transformados em um show, por outro, algumas rotinas necessárias estão ausentes nas relações contemporâneas. Talvez estas sejam duas faces de uma mesma moeda: a conexão entre as pessoas é performática. Os rituais abdicaram de uma história a  serviço  de um desvio de qualquer tentativa de aprofundar uma banalidade.
        
Foto: Reprodução
Nos relacionamentos, é comum uma queixa com a rotina e uma ritualização de comportamentos sociais. Festas com pouco encontro e muita cena fotografada a fim de ser postada. Ao refletirmos sobre os rituais e a sua necessidade de repetição, faz-se necessária a compreensão de que essa, sem um significado com estilo único, é mortífera. Possuímos uma tendência a repetir[ii] aquém de uma experiência considerada prazerosa. São assim os vícios que não possuem uma intenção movida por um  desejo, mas representam uma compulsão. Uma falta de sentido na origem da energia para viver é convertida em atitudes desprovidas da presença de um sujeito.  Relações onde a repetição suplanta o prazer com a curiosidade por cada minuto respirado sufocam a possibilidade da sensação de cumplicidade desenvolvida com a renovação implicada em um voltar para casa como em retorno de uma viagem.
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         Quando retornamos a um lugar conhecido, há uma alegria do reencontro com algo ‘familiar’[iii] que, ao mesmo tempo, nos envolve e nos desacomoda, pois tanto nos faz perceber que somos os mesmos, como inquieta a partir do que observamos solitariamente na vida de forma diferente. Esse é o lugar privilegiado dos amantes que se encontram através de uma linguagem própria, infantil pelo seu conteúdo terno, e adulta pelo olhar que alcança uma cumplicidade que cria uma sensação de estar novamente acompanhado. Voltar pra casa com o desejo de contar sobre o que vimos no mundo faz com que a rotina se torne um lugar de também encantamento com a novidade.
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         Médicos, a partir do avanço tecnológico, adquiriram a possibilidade diagnóstica através de mais instrumentos. Porém, os pacientes residem dentro de corpos que, se vistos apenas como embalagens de conteúdos ocos, podem ser amassados pela carência de uma pesquisa que considere a pessoa presente dentro deles. No ritual de exames clínicos onde o toque marcava o contato, o olhar e o vínculo tornavam esse momento um instante recheado de sentidos. Mostrar um corpo sem que isso seja uma performance, mas um território a ser desbravado, tornava a rotina de um exame um lugar para a conversa e a construção de um vínculo de confiança. Hoje, não é raro estar um laudo associado a um resultado de exame, sem um olhar entre humanos, mas somente uma observação que vislumbra a finalização de uma fria atividade examinadora.
         Não pretendemos aqui desqualificar o que o avanço da tecnologia trouxe para a possibilidade de vida, nem mesmo observar que nas relações amorosas o importante é variar ou retornar. O pretexto busca refletir sobre a vida desperdiçada atrás de coreografias performáticas que perderam os rituais de tradição.  Ou seja, aqueles que carregam um significado de herança necessária a um humano que se preze. Estar junto de alguém apenas por um papel torna a vida um palco onde podemos até ser protagonistas do espetáculo, mas não disperdicemos o lugar de autor de nossa história.
Simone Engbrecht- psicanalista  



[i] A sociedade do espetáculo é um livro de Guy Lebord publicado em 1967 e que trata do consumo.
[ii] A compulsão a repetição como a expressão da pulsão de morte foi apresentada por Sigmund Freud, após as observações sobre os efeitos da guerra, em 1920.
[iii] Das Unheimlich- Freud em 1919 pesquisou a inquietação encontrada numa familiaridade que causa um estranhamento.

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