Ser humano em passos de formiga
“Assim caminha a humanidade... com passos de formiga, e sem vontade”
Lulu Santos. Refletimos, nesse instante, sobre a falta de vontade em
caminhar... Os humanos fazem parte da espécie animal que necessita, para
sobreviver, mais tempo do que outras, de cuidado dos semelhantes. Esse período
irá marcar para sempre a sua maneira em lidar com o desamparo. A morte é um conceito
que cada um adquire apenas de maneira racional, a partir da experiência de
perda de entes queridos, porém, ninguém possui memória de vivência de sua
própria morte, sendo essa somente vivida, portanto, em ameaça[i].
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O cuidado com a vida é adquirido através da maturidade
nascida com a autonomia e pelo desejo de viver. A cada ameaça de perda, a
fragilidade é vivenciada como algo com o qual cada um precisa administrar. Uma
doença física, uma decepção amorosa, uma falência financeira: experiências onde
a impotência diante da realidade é apresentada de forma imperativa. Precisamos
ser formigas fraternas.
A sociedade contemporânea tem incentivado uma saída diante
da fragilidade humana: a recusa à impotência. Infelizmente, não perceber a dor
faz com que alguém possa se defender de uma sensação desagradável, mas também
se torna vulnerável pela solidão. Quando nos submetemos a uma anestesia, é
porque nos entregamos a um médico que realiza uma intervenção a fim de nos
fortalecermos. Entretanto, a anestesia, em si, nos deixa totalmente dependentes.
É preciso grande cuidado, portanto, quando procuramos uma anestesia psicológica.
Ela deve possuir um tempo de duração determinada e administrada com muita
consciência de seu objetivo.
No século passado, os bens materiais podiam ser vistos como
aquisições que enalteciam as pessoas que queriam competir através deles, como
se estivessem diante de uma seleção. Quem possuía o melhor carro, a mais bela jóia,
ou a casa mais sólida. Uma pessoa se sentia com sucesso quando conquistava uma
segurança material. No presente século, a arrogância[ii]
tornou-se uma defesa contra a percepção de humanidade. A aquisição de riquezas
materiais hoje não apenas acontece movida por um desejo competitivo, mas
destrutivo, principalmente diante do Ser que habita cada um.
A impotência de cada pessoa ressignifica o sentido da vida.
Diante de uma doença ou de um prejuízo, cada um possui a chance de questionar
sobre o sentido de sua vida até ali, sobre as suas escolhas, e pode, diante
delas, modificar o seu futuro, mesmo que esse seja breve.
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Quando a vida de alguém é construída defendendo a pessoa de
qualquer frustração, buscando bens materiais ou aparências que anulem uma
reflexão mais profunda, a vida vai sendo negada como um vício que busca uma
proteção. Abrir mão de uma aparência de sucesso não é simplesmente deixar de
competir com as pessoas, mas buscar condições para usufruir a vida com um valor
sem a necessidade um invólucro de felicidade e permeada pelo sentido em
experimentá-la tal como ela se apresenta, sem comparações.
Vida sem uma aparência de vitória é aquela onde cada dia
pode ser experimentado sem ter a necessidade de vencer alguém ou superar alguma
inveja. A leveza e o humor acontecem quando o sentido de viver está apenas em
doar atenção aos outros e acompanhar a sua pequenez. Acompanhar-se de alguém e
não de outros é a verdadeira diferença
entre a carência e o amor. Passos de
formiga, mas com vontade.
Simone Engbrecht - psicanalista
[i]
Conteúdo trabalhado em Reflexões para os
tempos de guerra e morte (1915) por Sigmund Freud.
[ii]
Arrogância- conceito estudado por Joel Birman, psicanalista.