A aparência do nada
O
público e o privado são conceitos ligados ao Direito quando referido ao patrimônio. Utilizaremos esses
termos nesse texto como uma metáfora para uma reflexão sobre a propriedade de
nossa identidade e das relações com os outros, tendo como questão a temática da
intimidade. Não é verdade que alguém que está ocupado com as aparências, esteja preocupado com a opinião dos outros. Alguém que se ocupa
com a sua imagem não está realmente ocupado com nada além da sua performance, mais nada. Não percebe os outros; esses são apenas platéia de
seu show particular. Por isso, não há como vislumbrar a opinião de quem nem mesmo tenha sido considerado.
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Observamos
uma contradição entre dois comportamentos que se apresentam com bastante
frequência no cotidiano: de um lado, pessoas expõe a privacidade de sua relação
dita amorosa e, de outro, mantém a mesma relação mediante uma promessa de
manutenção de aparência feliz. Contraditório, pois há duas marcas: a de alguém
que não reconhece o que é privado e uma
tentativa para esconder uma fragilidade no seu relacionamento.
A psicanálise trabalhou com o conceito de sexualidade
diferenciado de sexo, enlaçando todo o estudo do amor como algo presente no
psiquismo de maneira muito mais complexa que uma análise de uma atitude. O
inconsciente como objeto de estudo abriu espaço para a reflexão sobre o que é
íntimo. As expressões do amor demandam uma riqueza interior. Assim, podemos
compreender que certos modos de relacionamento tão diferentes: manifestados
através da tentativa de escancararem a privacidade e, ao mesmo tempo, escondê-la
são a mesma versão de um vazio que tenta ser reparado através de uma frágil
roupagem. O vazio da ausência da intimidade.
A linha que demarca o que é privado e o que é público fica
confusa quando ela é riscada por regras e não pela ética. Cuidar das fantasias, desejos, sensações e expressá-los após
uma metabolização[i]
interior difere de usar apenas um filtro preconceituoso. Quando as relações com
os outros se transformam em ferramentas que tentam encobrir uma falta do si
mesmo, as pessoas podem se sentir existindo
apenas durante a sua exibição para terceiros.
A intimidade é feita de um olhar nos olhos de quem é visto e
enxerga. Portanto, olhar nos olhos de alguém para fazer pose de espetáculo torna
a vida de muitos apenas uma cena de sobrevivência de alguém representando que
vive.
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A vida privada é composta por aquilo que alguém decide
divulgar ou não e a intimidade corresponde à identidade de alguém, a sua
maneira de ser. A carência de uma sensação de existência pode resultar em uma necessidade
que alguém possui de mostrar aos outros tudo o que pensa e faz para que possa ‘se
achar’ pois não consegue se encontrar.
Se sentir sozinho
pode ser traduzido por sentir o que está se passando consigo com autonomia, ou
seja, sentir a si sem precisar do outro para decifrar o que está sentindo. Esse
é um requisito para que alguém não sinta uma solidão, como uma conseqüência da
ausência de si mesmo. Manter uma aparência de estar acompanhado para enganar a
solidão sentida dá bastante trabalho.
Simone Engbrecht- psicanalista
[i]
Metabolização- termo utilizado por Jean Laplanche, psicanalista, para
apresentar o percurso do sexual no psiquismo.