Não assujeitados pela superfície


A sexualidade, enquanto conceito psicanalítico, diferencia-se do sexo nos animais, pois ela não é compreendida apenas como uma satisfação que visa uma descarga, ou que possui uma finalidade de preservação da espécie. Podemos, porém, mesmo como as abelhas, sofrendo risco de extinção, polinizar algumas ideias que consideramos fundamentais para que façam florescer diferentes pontos de vista sobre o sentido que nos torna sujeitos de um corpo biológico.
Imagem do site Cine Pop referindo o filme Nasce uma Estrela 
Vivemos num momento de imensas aquisições quanto a uma maior possibilidade reflexiva sobre qual é mesmo a nossa real identidade. Há pouco menos de 50 anos atrás, o casamento, a maternidade e a paternidade pareciam apenas acontecer para grande maioria. Para uma escolha de ofício, bastava simplesmente  escolher o que aprender. Envelhecer era simplesmente despedir-se de tudo.  Era como se a identidade de cada um fosse sendo encontrada e também perdida apenas pela passagem do tempo, sem muitos questionamentos ou inquietações. Hoje, muito mais do que nos situarmos de fora para dentro, há uma necessidade de nos posicionarmos de dentro para fora.
A fim de reconhecermos o que almejamos, o que faz o nosso coração acelerar, uma certa distância da superfície é bem necessária. Nomeamos superfície o raso, Shallow[i], tão lindamente poetizado na canção de Lady Gaga no longa Nasce uma Estrela. A maldade é rasa, já afirmava Hannah Arendt. Pois o mal produz um raciocínio repetitivo que julga apenas para revestir uma condenação já previamente realizada pelo preconceito que insiste em represar o que faz cada ser construir uma história e uma existência única, sem possibilidade de réplica.
Mudar parece simples quando se está bem. Ops! Não mudamos quando o time perde, quando dói, quando algo vai mal? Não. Mudamos quando possuímos coragem para estar vivos e quando não sentimos medo de nós mesmos, de nos vermos sozinhos e tão únicos. A beleza da sexualidade está nas coisas simples, são elas que propiciam que cada instante não seja visto com o tédio de uma rotina.
Imagem do site Olimpíada Todo o Dia
O amor desabrocha a partir da sexualidade neste sentido psicanalítico. Quando ela é obstruída, qualquer um se torna um  adicto de algo ou de alguém que alivie o vazio de não se sentir preenchido por uma identidade. Muitas pessoas, a fim de não de não assumirem uma falta de amor em seu interior, compreendida por sexualidade no sentido mais amplo, são carentes de si mesmas. Sendo assim, elas se revestem de bens materiais, tarefas, companhias e uma imagem "instagramável" de felicidade. 
 Infelizmente, as convenções sociais e os padrões de bem viver ainda tentam atrelar com velocidade  os desejos que tornam um sorriso, uma palavra ou um olhar as coisas mais preciosas da vida. O que nos aprisiona, como ouvimos através da sonoridade da letra de Shallow é o medo que temos de nossa própria destrutividade. Que possamos ter coragem de mergulharmos e não nos percebermos mais através de um reflexo na superfície numa imagem das águas, mas na reflexão de nossos pensamentos que possuem uma curiosidade sobre aquelas pessoas que estão sempre nos surpreendendo com uma beleza oculta e não assujeitada.
Simone Engbrecht- psicanalista



[i] Shallow- música que recebeu Oscar de melhor canção original em 2019.


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