Dívidas com Ideais


         O sentimento inconsciente de culpa é um conceito trabalhado em Psicanálise a partir da observação de que uma diminuição no sofrimento  de alguns pacientes provocava uma resistência ao progresso do tratamento. Essa contradição foi investigada. Inicialmente, pontuamos que a palavra utilizada na língua Alemã para culpa Schuld pode também ser traduzida por dívida.
        
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Nenhum ato cometido pode ser desfeito por outro. Essa é a noção de realidade, história e temporalidade que precisamos enfatizar. Um acontecimento presente sempre será um acontecimento passado. No próximo instante podemos repensá-lo, mudar nosso ponto de vista, nossas próximas atitudes. Mas as que já foram não são modificáveis. Há uma impotência nossa diante do passado e isso é um limite a ser sempre considerado para nossa saúde.  
Um castigo não modifica o mal cometido em um ato. É nesse momento que diferenciamos dívida de culpa. Uma pena moral está a serviço de uma posição jurídica, religiosa ou moral com um propósito de aprendizagem. Uma pessoa pode ter uma dívida com a justiça, com as regras, porém, o sentimento de culpa possui uma outra complexidade. Alguém pode pagar uma dívida concreta, mas não terá, com isso, modificado o passado.
Uma dívida é contraída na diferença entre o ideal e o real. Conhecermos os ideais e refletirmos sobre o quanto eles nos organizam ou, por outro lado, nos impossibilitam é fundamental para a revisão de quais são as dívidas estamos tentando saldar com nossas ações. Idealizações são construídas a partir de um desejo inconsciente de perfeição. Se alguém acreditar que a perfeição irá acontecer se tiver uma economia monetária capaz de sustentar qualquer acusação sobre as suas fragilidades, por exemplo, poderá realizar suas ações visando apenas sustentar valores financeiros. Se alguém, de outra forma, acredita que os seus ideais serão atingidos realizando os desejos familiares de reproduzir e possuir uma grande família como a dos antepassados, terá cumprido e pago qualquer dívida se assim proceder.
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Dívidas ativas com os ideais promovem sentimentos inconscientes de culpa, pois os ideais não foram suficientemente apropriados enquanto valores. Algumas pessoas por não conhecerem quais são os seus ideais e os diferenciarem de quais são  os ideais que herdaram de seus pais, podem sentir uma culpa por sua existência e, consequentemente, por qualquer progresso nela.
Envelhecemos enquanto vivemos. O envelhecimento, quando reconhecido como uma realidade impossível de desviar pode provocar um sentimento inconsciente de culpa e um boicote, um castigo inconsciente por viver.  Quando a existência, enquanto propriedade individual,  não é um ideal suficientemente apropriado e livre de dívidas com ideais ultrapassados, ela pode se tornar um fardo a cada progresso.
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Viver a vida a fim de pagar dívidas contraídas com ideais desconhecidos ou conhecidos, mas não reconhecidos como nossos, pode torná-la sem um sentido nomeado (apenas sobrenomeado) e muito vazia, preenchida apenas com um sentimento inconsciente de culpa que tenta escoar-se através de um boicote em viver.
A psicanálise traz como proposta a reflexão sobre quem somos e o que pretendemos enquanto desejo de existência, a fim de observarmos a nossa pequenez e, diante dela, optarmos sobre o que pretendemos ser e deixar para o futuro. Quanto mais alguém se apropria de sua história e se diferencia da dos outros, menos dívidas promove também para com quem ele conta e ama. Revisemos nossos ideais.
Simone Engbrecht - psicanalista

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