Sinto, logo existe, pode ser um engano


         Dar valor as sensações compreende utilizá-las como ponto de partida para uma investigação. Sigmund Freud criou a psicanálise através do conceito de inconsciente que ultrapassa muito a concepção de que  a ele correspondem apenas  idéias as quais não foram dadas a devida atenção. Ele observou que o ponto de vista que possuímos de algum acontecimento pode estar confundido com fantasias, porque podemos ter fugido um dia de alguns desprazeres.
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Sinto, logo existe, pode ser um engano. O sentimento existe, porém a sua fonte pode não estar naquilo que a pessoa acredita que acontece. Sinto que Fulano me frustrou: um engano, pois fui eu quem me frustrei com Fulano. Parece sutil a diferença, porém é fundamental no que se refere à liberdade de alguém diante de si mesmo. Se alguém sente uma ira ou uma angústia incontrolável por conta de uma frustração, as razões são inconscientes e não podem ser unicamente localizadas no acontecimento externo. Ao tomar posse de um sentimento de frustração, a pessoa tem a possibilidade de dominá-lo e pensar sobre as suas ações, tendo claro que nenhum acontecimento passado é mutável ou passível de correção. Somos impotentes diante do passado. Quando ela não se apropria do desprazer e o desconforto segue sendo propriedade alheia,  parece que a única forma de contê-lo seria a modificação de uma realidade que, na grande maioria das vezes, não está ao alcance de mudança, nem mesmo no futuro.
         A cultura do consumo tenta confundir o que é concreto com o que é subjetivo. Nossa felicidade não está na decoração de uma mesa farta nas festas de final de ano, por exemplo. Sentir felicidade é subjetivo e corresponde a valores singulares. Os sentimentos existem, mas não podem ser atribuídos a uma interpretação rasa, o que dirá concreta e fundamentada na realidade externa.
         A autonomia depende da coerência interna entre as  atitudes e os valores. A liberdade é adquirida quando os limites entre a própria pessoa e as outras são percebidos. Se alguém se sente culpado pelo que acontece aos outros, confunde a sua impotência  com um desejo onipotente em relação aos outros. Ser coerente em uma atitude consiste em refletir  sobre as frustrações que se vive como limites e não por vitimização, e quais são as atitudes escolhidas a partir disso.
Propriedade Privada
Pais e mães, por exemplo, frustram os filhos quando não realizam alguns de seus desejos, porém se as suas ações foram escolhidas de maneira coerente com o que consideram fundamental, não há culpa. Ou seja, os filhos irão se apropriar aos poucos de sensações desagradáveis e amadurecer diante de limites. Salientamos que essa ideia não é militante de uma indiferença, ao contrário, é somente percebendo radicalmente os limites entre eu e outro que podemos nos apropriar de atitudes que visam o bem em coerência com valores internos, sem debitar isso no domínio sobre o que se passa na mente de cada um.
Quando alguém atribui à realidade externa, uma ação sua, considera seus atos apenas reagentes ao ambiente e não se responsabiliza pela sua própria escolha. Não é raro, acusar em sequência  os outros de seus limites. Portanto, seja o sentimento de culpa fora do âmbito do crime, como o sentimento de vítima diante de uma frustração,  motores utilizados de maneira inconsciente para criar uma confusão sobre as  reais responsabilidades  que cada um possui diante de  valores que precisam ser tornados propriedade privada.
Sentimentos tornam-se propriedade privada quando eles criam perguntas que ecoam para o nosso interior, deixando de ser argumento para uma paralisia diante da responsabilidade pela liberdade que a maturidade nos convoca. O valor dos sentimentos não está em alicerçar uma racionalização que promove culpas ou vítimas, mas em escutar a subjetividade presente no interior de cada um.
Simone Engbrecht - psicanalista
        
        


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