Veja o que fizeram de mim


Em um momento onde o mundo presta atenção nos próximos atos, é necessário uma reflexão sobre as palavras. A propriedade mais livre que possuímos são os nossos pensamentos, constituídos por uma sequência delas a fim de darem um significado a um projeto. Nossos sentimentos acontecem, algumas vezes provocados pelos acontecimentos, porém cabe a nós escutá-los a fim de torná-los também terra própria. Hoje, o limite entre o ato e as sensações está cada vez mais borrado. A psicanálise foi desenvolvida a partir da investigação sobre o sentido sobre a falta de autonomia de uma pessoa diante de sua vida e hoje suas descobertas são usadas de maneiras encobertas.
Cena do filme Dunkirk/Warner Bros
         Há uma pressão cultural que vitimiza as pessoas tornando-as reféns de uma ideia de que o seu sofrimento é resultado de algum acontecimento. Esse é o resultado de uma pesquisa de antropólogos franceses Fassin e Rechtmann[i] que marcaram o quanto a psicanálise foi distorcida em sua leitura sobre a temática do trauma, considerando acontecimentos como fatos que causaram a posição de alguém, desconsiderando qualquer complexidade.
         Marcamos que além de excluir  a pessoa como um ser possuidor de subjetividade, essa ideia é propicia para um apagamento entre a distância necessária para percepção da realidade. Dizer que faço assim ou assado, porque Fulano me provocou a ser assim, muito além de me vitimizar, torna os meus atos com pouco intervalo de pensamento.
         Para muitas pessoas na atualidade, pensar é sinônimo de se culpar: única e exclusivamente porque o raciocínio raso compreende a causa e efeito de sentimentos ou atos, sem a propriedade da reflexão, apenas de um julgamento infantil[ii].
Foto: Reprodução
          Refletir sobre as ações coerentes consiste contemplar o universo de possibilidades e desejos próprios, escutando e se apropriando, inclusive daqueles inconscientes, a fim de decidir sobre uma atitude. E novamente, uma atitude com coerência com seus valores e, portanto, a si mesmo,  e não o que pretende do outro. Observar qual é o limite é fundamental para não se perder no universo de impossibilidades.   ‘Falei tudo o queria, porque Fulano me deixou com raiva’, marca apenas a descarga presente em seus sentimentos que não foram apropriados, isso é, tornaram-se propriedade de alguém com pensamento. ‘Fulano precisa saber o que eu penso (entenda-se o que sinto)’ é com a ideia de que alguém irá realizar a atitude esperada a partir do que se imagina que seja seu poder provocar.
Não sabemos como os outros nos escutam ou o que entendem a partir de nossas atitudes e palavras: esse é o nosso limite. Mas o mais importante: não são os acontecimentos ou as  outras  pessoas que determinam quem somos. Esses podem apenas provocar sensações, pensamentos.  Somente o que fazemos com eles é que determina quem somos.  Compreender os nossos limites é contemplar a nossa liberdade. Se alguém interpretar de maneira causal, atribuindo a algo externo uma atitude, ou mesmo, um falta de atitude sua, está utilizando uma concepção vitimizadora de si, mesmo que se sinta culpada de tudo...modos distorcidos de não contemplar os limites propostos pela psicanálise. Ninguém precisa ver quem somos, mas nós necessitamos admirar quem nos tornamos. Desculpemos a nós mesmos do que não nos pertence e nos responsabilizemos pela paz nas relações.
Simone Engbrecht- psicanalista                                   




[i] O Império do Trauma- conceito presente no livro  L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime’ de Didier Fassin e Richard Rechtmann, escrito e, 2007.
[ii] Julgamento é feito por vários passos do raciocínio judificativo, mas o primeiro é apenas de considerar o que me convém ou não.

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