Autômatos ou autônomos
Em tempos onde a individualidade é
confundida com o individualismo, percebemos o quanto é difícil considerarmos o
limite ente o egoísmo e a independência. Medo e culpa são sentimentos com os quais precisamos lidar
a fim adquirirmos coragem para nos posicionamos e definirmos nossas atitudes,
aliás, as únicas que podemos escolher. Porém, o excesso de informações e
mudanças no Globo nos atordoa e estamos muito mais do que inseguros.
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Observamos duas manifestações freqüentes
diante do atordoamento que a invasão de privacidade provoca: sensações
paranóides ou de arrogância. Em psicanálise, a falta de amadurecimento psíquico
diante de um excesso de estímulo atinge a intimidade, porque essa ainda não
está bem revestida pela possibilidade de diferenciar o externo do interno. A
nossa autonomia vai se desenvolvendo pelo controle esfincteriano, a locomoção
e, principalmente, pelo pensamento, porque é ele quem oportuniza a liberdade.
Diante de qualquer notícia, estamos nos
tornando desconfiados ou arrogantes. Parece que há uma mensagem de caos
anunciado ou de banalidade. Possivelmente, essas sensações paranóides façam
parte de uma tentativa de organização de pensamento, quando o atordoamento toma
conta, pelo volume de informações e violência aliada a elas.
No
processo de construção de identidade de um adolescente, a arrogância tenta,
muitas vezes, se defender de uma intromissão dos adultos que, talvez por não
sustentarem a sua autoestima, avançam em território adiante daquele que seria o
seu. Essa reação o torna desprotegido de riscos. A vida fica para eles radical,
não apenas nos esportes; tudo precisa ser vivido de tal forma que a adrenalina
prove a sua existência. No envelhecimento, podemos perceber algo semelhante,
uma defesa em relação aos acontecimentos de maneira a banalizá-los ou a
torná-los catastróficos, dois lados de uma mesma moeda. Pretendemos demarcar
que tanto as reações paranóides quanto as arrogantes fazem parte de um mesmo
esquema que desprotege o sujeito de entrar em contato com a realidade.
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A psicanálise nasceu da descoberta de que
não são as informações ou os comportamentos concretos que tornam as pessoas
mais conscientes de si, mas a sua possibilidade de movimentação reflexiva. Observar
os limites e os riscos, diante dos desejos, sem superdimensioná-los exige um trabalho
interno que sustenta inquietações e frustrações, distintas do sofrimento da
falta do si mesmo. Por exemplo, quando alguém acredita que obedece aos outros
com as suas atitudes, é fundamental estar atento que cada atitude de obediência
é escolha sua. Escolhe o desejo de agradar alguém realizando algo, se isso de
fato acontecer é ‘outra história’. Ao escolher uma atitude, em virtude do objetivo
de agradar alguém, precisa estar consciente que está abrindo mão de outra atitude que também faz
parte de sua lista de desejos. As reflexões da qual falamos são aquelas que
vislumbram as diversas possibilidades de escolhas que cada um possui. Não é
apenas pensar no que se quer, pois sempre desejamos muitas coisas, mas refletir
sobre quem somos. Se a cada vez que acordarmos pela manhã ,desconfortáveis por
querermos dormir mais, e ocorrer somente: ‘eu quero dormir mais’, a confusão
entre um desejo raso e um mais profundo está feita.
Muitas vezes, as pessoas acreditam que
não possuem escolha, como dizem, estão sem saída. É aí que a violência no
pensamento acontece, ela é muito mais sutil e acontece de maneira muito mais
silenciosa do que nos comportamentos agressivos e ruidosos. Os vícios são
chamados de dependência exatamente pela impossibilidade de autonomia de alguém
diante de algo avassalador dentro de si.
A sociedade na atualidade estimula o
individualismo operando no contraponto da ameaça da solidão. A fragilidade
provoca um esvaziamento da profundidade do pensamento e dos vínculos. Muitas
pessoas buscam relacionamentos rasos a fim de tamponar a sensação de vazio de
uma individualidade não enriquecida com o tempo. Conhecer uma posição requer
coerência com os valores e princípios trazidos, sem uma obediência a eles, pois
o sentimento de culpa, como temos escrito ao longo de vários textos, é tão
enganador quanto a desconfiança ou a arrogância. A autonomia necessária diante
de si mesmo é uma construção diária a partir da revisão proposta pelo tempo.
Sustentar a autonomia com profundidade,
sem o ferrolho da obediência, exige coragem de existência. Os autômatos se
escondem atrás das razões atribuídas aos outros, pela violência do sentimento
de culpa, ou atrás do consumo, pela violência do vazio interior vampirizante,
ou ainda, atrás do isolamento, pela violência da demanda social de aparências
de felicidade em falsos enlaces. Freud disse, ao avistar a estátua da
liberdade, para um discípulo, que a Psicanálise traria a peste[i],
talvez por transmitir aquilo que inquieta um pensamento que busca apenas um
alívio pelo excesso e não um prazer pela reflexão.
Simone Engbrecht-
psicanalista
[i]
Esse episódio é relatado por Roudinesco e Plon, historiadores, em Dicionario de
Psicanálise de 1997.