A Primeira Pessoa do Plural


         Nesse tempo, a possibilidade de utilização do pronome Nós necessita ser considerada, pois paradoxalmente, persiste uma polarização no pensamento. Todos somos o alvo de uma guerra travada contra o invisível e há uma resistência grande ao Nós. Portanto, a reflexão sobre o Eu e o Eles em psicanálise parece prudente.
        
Primeira Guerra Mundial - site Dom Total
Sigmund Freud considerou que a distinção entre o Eu e mundo externo é realizada na medida em que a vida psíquica vai ganhando força. No início, o Eu ama somente a si próprio e o mundo externo coincide com o que é indiferente, ou mesmo, enquanto fonte de estímulos, como algo desagradável[i]. A realidade vai sendo percebida a partir das formas como os critérios que diferenciam o externo e o interno vão sendo utilizados e modificados. Primeiro, não há critério de distinção, há somente indiferença, o Eu não é apenas considerado o centro do universo, mas O universo. Aos poucos, sensações desprazerosas vão acontecendo e o Eu busca purificar-se, dividindo e projetando no mundo o que é sentido como desprazeroso. Somente quando o Eu é capaz de amar, sustentando a ambivalência estabelecida entre o amor e o ódio, os semelhantes são realmente considerados, ocoreendo a possibilidade de construção de Nós. A semelhança contempla o igual e o diferente em seu fundamento.
Imagem: site Mundo Educação
         Mais adiante, em sua obra, Freud construiu o conceito de narcisismo das pequenas diferenças[ii] dando abertura a ideia de um nós que pode ainda encobrir o velho critério de jogar para fora, em um pseudo Eles, toda a hostilidade que não pode ser administrada por um grupo. Esse pode se reafirmar, somando cada um dos Eus inflados: ‘nós não possuímos essa característica e, portanto, a nossa destrutividade poderá ser cultivada e desarregada a partir de atos’. 
         Podemos compreender como é crucial a diferença entre solidariedade e piedade, a fim de que o primeiro termo não seja utilizado de maneira leviana encobrindo o segundo. Hannah Arendt afirmou que pela lógica da piedade há uma dissimetria de poder; ela é cruel, porque reforça a desigualdade[iii]. Na solidariedade, as pessoas são consideradas semelhantes. Na piedade segue havendo um Eles.
        
Foto: Reprodução
Para que haja um Nós que inclua a todos, os diferentes Eus se aproximam pelo reconhecimento de sua fragilidade. Nesse momento, todos nós estamos desamparados buscando nos  proteger de um vírus, quando notamos que em seu interior acontece algo invisível e desconhecido e com força suficiente para matar. Isso nos atordoa, nos traumatiza. Sermos potencialmente transmissores da morte ou da vida, nos coloca em um mesmo grupo de risco, o risco de hospedar uma coroa que não vemos.
         A fraternidade advinda da fragilidade percebida por um Nós, que não esteja diante de um Eles, mas de algo invisível, pode nos confrontar com a questão do quanto hoje é necessária uma solidariedade. Essa marcada tanto pela nossa impotência diante do contágio, por nossa pequenez, quanto pelo nosso desejo de não sermos potencialmente transmissores da morte,  pela responsabilidade de nossas atitudes.




[i] Sigmund Freud. Os Instintos e as suas vicissitudes. 1915.
[ii] Narcisismo das pequenas diferenças é um conceito presente nos seguintes textos freudianos: O Tabu da virgindade, de 1918 e Mal estar na civilização, de 1930.
[iii] O conceito de piedade foi trabalhado por Arendt  no livro Sobre a Revolução de 1963.

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