O vírus na superfície do lago


Narciso[i] se afoga no Lago ao se apaixonar por sua imagem ali refletida e desejar possuí-la. O traumatismo na atualidade nos questiona: ‘onde está o vírus? Preciso saber a fim de me proteger dele’. A pressa nas ações necessárias numa emergência social  demanda uma paciência em sustentar  pressas individuais presentes na busca pela  tranquilidade das águas, imaginando que as ondas só existem em mares distantes. É inquietante, significativa e presente a formulação de Hannah Arendt de que o mal banal está na superfície[ii].
Imagem: site Ojo al clima
Nas batalhas medievais, há uma aparência de vencedores e perdedores. Em cada duelo, o sobrevivente vitorioso era aquele que matava os inimigos. Quem mostrava, de alguma forma, a fragilidade de seu corpo era considerado um perdedor. A destruição de pessoas continha uma aliança entre uma ideia de fim de guerra com um momento de triunfo.
O impulso de domínio foi, aos poucos,  se infiltrando, diante das descobertas tecnológicas, no desejo do homem superar a fragilidade do seu próprio corpo e acreditar que não envelheceria, se mantivesse uma plástica aparentemente jovem e obtivesse poder. A ilusão que o consumo foi oferecendo deu ao narciso que mora, no interior de cada um, o falso sossego. Uma pressa em demonstrar uma imagem virtual de felicidade com as conquistas consideradas troféus de sucesso. Casamentos, filhos, relacionamentos sociais, cargos profissionais puderam facilmente transformar-se em propriedades símbolos de vitória, quando obstruíram a capacidade de enxergar que há um iceberg abaixo do lago, quando construíram o retrato de que somente o envelhecimento  confronta alguém com a ameaça da morte,  quando apoiaram o discurso de que ser responsável consistia em somente obedecer a uma regra conveniente a  responsabilizar os outros por qualquer perda.
Considerar que cada pessoa é proprietária de subjetividades e não apenas de objetividades, vistas a olho nu, amplia a possibilidade de estar acompanhado dos pensamentos de colegas, de um cônjuge, dos filhos, ouvidas através do que se alcança escutando no necessário retraimento de uma  observação. Compreende a manutenção da paciência com a curiosidade diante do desconhecido, aqueles que nos movimentam para a vida além do nosso egoísmo.
Imagem: site Superinteressante
A solidariedade acontece quando os desconhecidos são percebidos como semelhantes e é quebrada a superfície que produzia a ilusão de que conhecíamos aqueles antes considerados iguais. Estamos higienizando superfícies planas onde o vírus sobrevive por mais tempo. Quanto mais a guerra for personificada, mais o vírus avança, porque nós seremos a superfície por onde ele poderá se instalar. Quanto mais o medo ficar na tela plana de prejuízos financeiros, mais a morte se materializa.
O vírus retirou a capa com que cada um escondia o seu narcisismo, a  arrogância. Alguns insistem em buscar o lago, mas é necessário cautela. Lembremos que essa é uma guerra contra o invisível que pode se hospedar em silêncio na intimidade de cada humano. A nossa carência de certeza pode nos atordoar, porém, as dúvidas que confiam numa investigação comum e com profundidade pode nos aproximar enquanto semelhantes, tolerar a diferença e  não a desigualdade.
Simone Engbrecht - psicanalista




[i] Narciso foi um herói na mitologia grega. Tirésias preveniu que ele teria vida longa se não visse a sua própria imagem.
[ii] Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, um livro de 1963, onde  Hannah Arend desenvolve essa ideia.

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