A Pandemia revela negações


A metáfora do iceberg já foi utilizada de várias formas nessa pandemia: para apresentar as pesquisas sobre a notificação dos casos daqueles que contraíram o vírus[i], a fim da ONU alertar para o impacto devastador a partir do número de mortos na Síria[ii], ou mesmo para falar da banalidade do mal tão presente na superficialidade do Narcisismo[iii], entre tantas outras associações com a mesma imagem. Quando sabemos que a parte da realidade que enxergamos é a ponta de um iceberg do que a ela corresponde, mesmo sem visualizarmos a presença do restante do gelo, sabemos que estamos diante de alguma coisa que nos provoca incertezas[iv].
Foto: Reprodução
O termo ‘negação’ em psicanálise é estudado a partir de vários conceitos. Acontece que Freud utilizou termos distintos, em Alemão, para referir-se a formas diversas de negar, mas todos esses termos podem, na Língua Portuguesa, ser compreendidos pelos leigos como negação. Pretendemos, porém,  enfocar aqui  somente um desses termos, em Alemão, ‘Verleugnung’, traduzido por renegação. Essa forma de nega utiliza um mecanismo de desmentir algo. Quando alguém manda dizer que não está presente quando na realidade está querendo se esconder de si, por exemplo, não está simplesmente mentindo, mas convocando ao outro a sua fala em outro lugar. Pode ser que aquele do outro lado da linha, ou da porta, pode perceber que há um engano, que alguém está presente, mesmo que não ouça nem veja nada, vislumbra apenas a ponta de um iceberg. E pode sobre essa presença/ausência estabelecer uma nova negação. Penso que Fulano esteja mentindo, mas prefiro apenas acreditar no que vejo e escuto: ele não está presente.
O momento traumático provocado pelo confronto com a morte, entretanto, nessa Pandemia, também é marcado por outro excesso: o confronto com o que desmentíamos bem antes dela iniciar. Em 1930, Freud[v] escreveu sobre as três fontes de nosso sofrimento: a fragilidade do corpo, a força da natureza e as nossas relações sociais. Talvez estivéssemos negando a humildade necessária diante do que já sabíamos, mas fingíamos que não havia: a nossa impotência diante daquilo que não tínhamos domínio: o nosso sofrimento. Insistíamos em não nos confrontarmos com o que estava presente e preferíamos empurrar para longe, anestesiados. Algumas vezes, foi confundido tristeza com apatia, para ingressar apenas na moda e não nos sentimentos. Muitas negações, antes realizadas, são agora confrontadas nessa quarentena:  idosos que já eram destituídos de seu valor social com o objetivo de que somente  os seus corpos fossem considerados frágeis  e a juventude pudesse se  tornar um fetiche, laços matrimoniais que já estavam desfeitos há muito tempo, mas encobriam a falta de coragem de um casal em sustentar a responsabilidade por sua singularidade e intimidade através de uma separação, ou ainda, a presença do poder da natureza encoberto pelo poder econômico realizando um espetáculo sadomasoquista: a natureza é frágil e pode ser destruída. Nesse último tema, estamos nos referindo ao masoquismo humano, infelizmente, nos machucamos sem sentir dor nos últimos tempos: ‘cheiro de fumaça ou pó aliviando pulmões viciados por um falso progresso’.
         Podemos, diante dessa Pandemia, insistir em afirmar que apenas conseguimos lidar com o que está sobre a superfície das águas, porém é preciso lembrar que navios estão sujeitos ao gelo submerso. Necessitamos encarar a nossa fragilidade, nos fazermos de vítimas apenas irá concretizar um fato, se esse for nosso único caminho, ao perceber a realidade. Nesse momento, as informações descartáveis podem ceder lugar ao conhecimento adquirido com a experiência de vida de cada um, a manipulação poderá ceder lugar a uma reflexão profunda sobre os próprios enganos. Coragem!
        
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Somos responsáveis por lidar com o sofrimento que nos acomete. Portanto, o benefício da dúvida pode ocorrer somente quando nos perguntamos sobre a recomendação de isolamento social diante desse vírus destrutivo.  A nossa aproximação com os outros acontece, porque necessitamos salvar a nossa vida ou a dos outros, porque o nosso ofício é essencial para que mais pessoas sobrevivam, ou estamos simplesmente realizando uma negação, desmentindo a presença do risco de vida, e circulando para manter a economia que insiste em ter mais poder que a natureza, para manter a ideia de que o nosso corpo não é frágil?  Estamos próximos apenas daqueles com quem moramos ou  insuflamos a resistência a repetir relações superficiais de encontros vazios,  revelando a nossa solidão por termos nos desacompanhado de nossos valores? Pessoas saem de casa para levar o nosso lixo. Continuaremos saindo de casa porque nos viciamos em encontros sociais vazios, nos quais utilizamos máscaras (somente para nos escondermos) e  tomado banho (para apenas lavarmos as mãos diante de nossa posição) ?
         Existe a possibilidade de trazermos à tona o que possui valor nessa vida: aquilo que pode interromper o vácuo. O quê? A presença de humanos que observam a natureza e seu poder, um corpo com a humanidade mortal dentro dele e, talvez o mais difícil, o véu a desvelar:  o respeito aos Outros, a coragem,  tão diferentes e semelhantes ao nos interrogarem a cada instante sobre a nossa posição, pois são aqueles que não estão fazendo uso dela.
Simone Engbrecht - psicanalista




[i] “Voltei a vestir o meu chapéu de epidemiologis”: depoimento do rereitor Pedro Hallal concedido a Fabrício Marques, publicado no site da Revista Pesquisa FAPESP.
[ii] ONU: números de Covid-19 na Síria são apenas o “topo do iceberg”, texto publicado no site Agência Brasil.
[iii] O vírus na superfície do lago, texto escrito pela autora do blog e publicado em 4 de abril de 2020.
[iv] Recomendamos a entrevista concedida por Edgar Morin a Alice Scialoja e publicada pelo site do  Instituto Humanitas Unisinos – Existem forças autodestrutivas em jogo, tanto nos indivíduos quanto nas coletividades, ignoras de serem suicidas
[v] O mal estar na civilização foi escrito por Sigmund Freud.

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