Rituais: obediência ou autonomia


         Diante de tantas incertezas, nos vemos constantemente confrontados com nossa fragilidade. E assim, possuímos uma tendência mortífera a obedecer regras em busca de um amparo sem a possiilidade de nos apropriarmos do sentido para  paciência, para simplesmente darmos um tempo. Não possuímos os rituais de uma cerimônia de passagem de algo que ainda não aconteceu. Estamos diante de um abismo que nos interroga sobre o sentido de nossa existência. Difícil é nos apropriarmos e adquirirmos autonomia frente a essa questão sem a necessidade apressada de uma resposta.
Foto: Reprodução
 Precisamos modificar alguns hábitos de forma drástica: maior higiene e distância do que antes. E menos ou nenhum tempo para nos despedirmos de quem perdemos em 2020. Tempos sombrios. Sigmund Freud esteve ocupado com a observação e a compreensão de ritos na cultura[i], conversando com a  antropologia, e demarcou que uma tendência compulsiva pode também se utilizar de atos que aparentemente são sem sentido. Destacamos a continuidade da pergunta anterior, difícil de ser realizada com a profundidade que ela merece: qual será o sentido de nossas ações?
         Quando um ato se torna um hábito, ele pode ser descolado de seu sentido original e concreto da sua razão. Alguém pode pentear os cabelos toda manhã, mesmo que ninguém o veja. Por outro lado, até que o hábito de limpar a sujeira invisível se faça, precisamos ainda lembrar que necessitamos lavar as mãos, mesmo não possuindo ainda a sensação de  sujeira nela.  Pensamos somente pela consciência no Covid-19, um sentido presente apenas através de crença,  e, portanto, não passível, de hábito.
         Os ritos são ações que compõe uma cerimônia de celebração de uma mudança. Variam de acordo com cada cultura e são os representantes de ações que não estão mais ali em sua maneira mais crua. Os rituais em relação aos mortos, mesmo que diferentes de acordo com os povos, correspondem a possibilidade da elaboração humana que vislumbra a morte de maneira sagrada, isso é, inexplicável. Rituais de acasalamento, passagem do tempo, ou entrada na vida adulta, correspondem a mesma questão... uma marca que determina a mudança na vida.  
         A perda do trabalho ou a modificação em sua rotina alteraram drasticamente as organizações humanas diante da sua produção. E essas mudanças não podem ser mensuradas por sua magnitude, mas observadas através de seu sentido a fim de nos apropriarmos de uma herança[ii]. Os rituais de consumo, por exemplo, foram herdados sem uma verdadeira apropriação, mas por uma invasão dentro do vazio nas almas dos consumidores[iii]. Aqueles que sentem falta de ir e vir ou em estar presentes  em eventos como se estivessem em um palco, captando imagens de onde estão e do que consomem, para que isso os represente: paisagens, pratos ou mesmo pessoas, hoje sentem uma falta aparentemente do contato, das aglomerações,  porém, essa angústia é proveniente de uma outra ausência: a de um curativo que usaram para tapar a melancolia já existente antes da pandemia. Ritos ficaram mais fortes que o seu sentido. Lembramos que aglomerar pessoas não é aproximá-las, assim como famílias não são uma soma de pessoas que necessitam de outras para a sua existência, isso é massa ou máfia.
Foto: Reprodução
         Paradoxalmente esse vírus invisível retirou a capa que tornava recoberta a desigualdade em vários sentidos e escancarou a ausência de sentido sobre o que os outros, enquanto pessoas reais, realizavam na vida de tantas pessoas. Acho muito interessante o termo ‘comida de verdade’ utilizado para diferenciar alimentos ultraprocessados. Nesse momento, é fundamental refletirmos sobre os contatos subjetivos ultraprocessados: pessoas que estão apenas a serviço de constituírem o palco de um show onde alguns poucos se mostravam,  e outros eram apenas platéia e coadjuvantes, escravos e obedientes.   Senhores da ostentação de bens materiais e festas,  onde o ritual da imagem era a representação de sua existência acabam como pessoas ultraprocessadas. Pessoas consumiam festas, viagens, coisas, ou lugares, como drogas... ou e... para serem anestesiadas da ausência de sua autonomia. Aparentemente senhoras do capital, mas escravas de uma existência vazia. A autonomia, como mostra a psicanálise, está na possibilidade de avançar e se desprede desse binômio perverso.
Imagem: Site Infomoney

O sentido de nossa existência nos impõe a pergunta sobre a nossa missão quando observamos pessoas consideradas somente como seres ‘falos’ de consumo diante de uma fragilidade. A pandemia revela qual é a nossa relação com os outros, antes invisíveis aos nossos olhos defensivos. Eles[iv] são aqueles que estão em condição de vulnerabilidade, sejam pela sua condição de cor da pele, condição econômica, condição de gênero, ou fundamentalmente ou pelo seu lugar no mundo: uma tópica de quem não quer se submeter e nem controlar, porém... existir como um HUMANO, com autonomia para refletir sobre os outros. Esse é o  lugar que tínhamos perdido antes da pandemia e nem havíamos percebido a perda... o de velhos que possuíam vida além de consumidores de excursões, o de jovens que possuíam ideais além de consumidores de internet, o de pessoas que não precisavam consumir ‘famílias’.
Sejamos seres fundamentados na finitude, dando sentido a vida presente contemplando a mesma, sem a necessidade de máscaras, além das que n0s protegem do Corona. Perdemos cerimônias fundamentais e adquirimos rituais que ainda parecem não ter sentido. Coerentes ao respeito que temos com a vida dos outros e aos mortos, é possível organizar a cerimônia, a parada necessária, para com o tempo de mudança e refletirmos sobre quais são as inquietações coletivas. 
Simone Engbrecht- psicanalista



[i] O estudo dos ritos e cerimônias está muito presente em dois textos freudianos: Atos Obsessivos e práticas religiosas(1907) e  Totem e Tabu(1912-13)
[ii] Inspirados em Johann Von Goethe: ‘O que herdaste dos teus pais, conquista-o para fazê-lo teu’.
[iii] Sociedade do Espetáculo é m livro de Guy Debord que contempla uma crítica ao consumo,sociedade e capitalismo.
[iv] Eles- terceira pessoa do plural e de importante consideração na idéia projetiva de fragilidade, tanto pelo desprazer colocado na representação do outro quanto pelo proteção busca a partir do exterior.

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