Servidão ao tempo


         Escutando a belíssima canção de Gilberto Gil que completou nessa semana 78 anos, faço eco, como homenagem, a alguns trechos: ‘Tempo rei. Não me iludo. Tudo permanecerá do jeito que tem sido. Transcorrendo. Transformando...Não se iludam. Não me iludo. Tudo pode estar por um segundo’.
        
Gambá se defendendo através de paralisia
imagem: Blog Marsupiais Brasileiros 
Uma das  frases repetidas nesse período tão sombrio é ‘tudo vai passar’, como se nos consolássemos de que esse momento infeliz poderia ser considerado pontual. Pensamos, porém que essa frase deve ficar violenta quando escutada por aqueles que perderam entes queridos nessa pandemia. Não puderam sequer se despedir e a vida de alguém que amamos não é algo que simplesmente passa. Sabiamente, Gil transformou o nosso choque diante da finitude em poesia: ‘tudo pode estar por um segundo’. O luto, diferente de um estado melancólico, é um processo de elaboração realizado pelo tempo. Uma cicatrização que a vida se encarrega naturalmente de promover naquelas feridas causadas por perdas.
         Somente o processo de luto transforma os sujeitos, porque eles percebem a realidade perdida, diferente dos melancólicos,  e possuem a energia necessária para uma[i] mudança interna. A questão que nos convoca esse vírus letal é exatamente a econômica, e aqui não estamos falando da financeira, mas dessa energia, de um excesso que transborda em angústia. O vazio que, antes do Covid-19, era revestido por uma aparente felicidade, por uma condição de consumidores autorizados a consumir para existir, está agora impedindo a quietude necessária para que muitas pessoas observem a sua inserção num coletivo humano. A depressão já estava instalada, porém disfarçada.
       
Foto: Reprodução
 
‘Não me iludo. Tudo permanecerá do jeito que tem sido’. Freud, em 1927, criticou as ilusões que alimentam a servidão[ii]. Somos seres transitórios. A finitude marca a nossa ética em nos ocupar com o tempo como um rei, mas sem servi-lo. Diante do tempo somos impotentes, porém o que fazemos com a presença dele, cabe a nós. Em alguns momentos, podemos apenas nos des-culpar, nos des-ocupando de nossa responsabilidade transformadora, porque nos afirmamos cansados pela vida já vivida, pelo envelhecimento ou empurrando para os outros a necessidade de mudar. Uma entrega da existência a uma condição passiva, como aqueles bichinhos que se fingem de mortos para não serem atacados. Lembremos, no entanto, que o nosso inimigo pode estar dentro de nós.
 ‘Não se iludam. Não me iludo. Tudo pode estar por um segundo.’ Esse é o segundo transformador, aquele que nos mostra o que mudou na realidade, o que já perdemos e necessitamos dizer um NÃO para adquirirmos força para virar a página. Para construirmos projetos para um agora.  Fazer luto de pequenas coisas ou grandes pessoas acontece quando percebemos que produziram a transformação de nossa memória. Como uma memória ressignificada, portanto, tomaremos atitudes que não precisam mais preencher um vazio dentro de nós, mas transformar as velhas formas do Viver.
Simone Engbrecht- Psicanalista



[i] Luto e melancolia[1917(1915)] é um texto de Sigmund Freud que compõe os seus artigos sobre metapsicologia.
[ii] O Futuro de uma ilusão(1927), texto de Sigmund Freud.

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