A vida transformando o tempo

                                         “Por detrás da alegria e do riso, pode haver uma natureza vulgar, dura e insensível. Mas, por detrás do sofrimento, há sempre sofrimento. Ao contrário do prazer, a dor não tem máscara.” Oscar Wilde 
        O ano seguinte àquele no qual perdemos uma pessoa amada é um período onde o luto é tecido. A repetição de datas significativas no calendário marcam a falta, as lembranças emocionam, e o tempo passa. Atualmente, em muitas culturas, esse momento fundamental para que as lágrimas cicatrizem as feridas tem sido obturado, revestido pela dureza da ausência de empatia. Como se qualquer falta tivesse que ser rapidamente preenchida e os sofrimentos  anestesiados. Não é raro também haver uma confusão entre um sentimento de pesar e uma anestesia. A piedade pode tentar esconder friezas. A depressão e a falta de ânimo abafam os lutos que não puderam ser realizados, quando a raiva de perder não dá lugar à tristeza. Há, nessas situações, um núcleo rancoroso e ressentido, disfarçado ou pela apatia ou pela mania[i]  

Foto: Reprodução

Nesse ano, mesmo para aqueles que não estejam vivenciando o luto de entes queridos, estão vivendo a perda de uma rotina presente em várias datas. Datas religiosas, aniversários, feriados, e outras celebrações,  estão modificadas por muitas faltas, pela perda de rituais presentes em anos anteriores. Claro que não precisamos nos paralisar e encontrar alternativas através da tecnologia. Algumas reuniões podem ser virtuais, algumas pessoas possuem carros para entregar presentes e música a alguém que comemora a chegada de uma nova vida, outras, até mesmo, seguem utilizando o espaço aéreo e encontram familiares que vivem longe. Ressaltamos, o entanto, que inclusive podemos sorrir com os olhos, mas eles não substituem o que a máscara protege, a nossa existência. 
Coringa; Imagem Estação Nerd

         Destacamos que a criatividade acontece somente quando a falta e as perdas são consideradas. Quando a dor experimentada coletivamente pelo mundo nesse ano não ‘afetar’ um indivíduo, a sua fragilidade pode ser encoberta e revelada pelo fetiche de um ‘agora é assim’, um ‘novo normal’, ou mesmo, através de uma crença de que não acontecem transformações complexas.  A melancolia substitui perdas por sombras. A vida que não transforma o tempo,  apenas vê o tempo passar, morre. É descartável.

         O tempo transforma a vida: a morte e as perdas acontecem. Porém, é também a vida que transforma o tempo. Um amigo lembrou, num dia duro que tivemos durante essa pandemia, que a morte de uma pessoa é sempre um número absoluto, nunca relativo. Não há o que comparar, nada a substituir.  As folhas de uma árvore que nascem na primavera não são iguais aquelas que foram perdidas no inverno, são, por isso,  muito diferentes de uma peça quebrada em uma engrenagem de engenharia. A singularidade de uma flor está nos detalhes que um material plástico ou uma imagem virtual não conseguem reproduzir. 

         Não relativizemos 2020, como se ele marcasse apenas o início de um tempo que veio para ficar. Cada ano, hora ou segundo, são únicos, quando percebemos a  vida que nos faz sentir a falta de quem não está mais, do que não está mais e, principalmente, do que já está diante de nós há tempo e tentávamos empurrar ‘para baixo do tapete’, como se fosse uma poeira simples. A desigualdade, o racismo, o fascismo, a  maldade dentro de cada um de nós são cruéis demais. Não podem ser desmentidos.

         Refletimos sobre 2020 quando percebemos a fragilidade que nos insere na qualidade humana. Quando perdemos muito mais do que aquilo que estava concretamente em 2019, mas uma sombra que escurecia as mudanças que a nossa vida não realizava por não sentirmos vergonha de perpetuarmos a perversidade da aparência de um sorriso que apenas usamos como Coringa[ii]. Se deixarmos para trás a nossa vaidade, 2020 talvez seja um ano em que a vida pretenda transformar o tempo, sem servidão apenas à sua passagem.

Simone Engbrecht- psicanalista


[i] Luto e Melancolia é um texto de Sigmund Freud escrito em 1915.

[ii] Joker- filme estadunidense de 2019;

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