A vida transformando o tempo
Foto: Reprodução |
Nesse ano, mesmo para aqueles que não estejam vivenciando o luto de entes queridos, estão vivendo a perda de uma rotina presente em várias datas. Datas religiosas, aniversários, feriados, e outras celebrações, estão modificadas por muitas faltas, pela perda de rituais presentes em anos anteriores. Claro que não precisamos nos paralisar e encontrar alternativas através da tecnologia. Algumas reuniões podem ser virtuais, algumas pessoas possuem carros para entregar presentes e música a alguém que comemora a chegada de uma nova vida, outras, até mesmo, seguem utilizando o espaço aéreo e encontram familiares que vivem longe. Ressaltamos, o entanto, que inclusive podemos sorrir com os olhos, mas eles não substituem o que a máscara protege, a nossa existência.
Coringa; Imagem Estação Nerd |
Destacamos que a criatividade acontece somente quando
a falta e as perdas são consideradas. Quando a dor experimentada
coletivamente pelo mundo nesse ano não
‘afetar’ um indivíduo, a sua fragilidade pode ser encoberta e revelada pelo
fetiche de um ‘agora é assim’, um ‘novo normal’, ou mesmo, através de uma
crença de que não acontecem
transformações complexas. A melancolia
substitui perdas por sombras. A vida que não transforma o tempo, apenas vê o tempo passar, morre. É
descartável.
O tempo transforma a vida: a morte e as perdas acontecem.
Porém, é também a vida que transforma o tempo. Um amigo lembrou, num dia duro
que tivemos durante essa pandemia, que a morte de uma pessoa é sempre um número
absoluto, nunca relativo. Não há o que comparar, nada a substituir. As folhas de uma árvore que nascem na
primavera não são iguais aquelas que foram perdidas no inverno, são, por isso, muito diferentes de uma peça quebrada em uma
engrenagem de engenharia. A singularidade de uma flor está nos detalhes que um material
plástico ou uma imagem virtual não conseguem reproduzir.
Não relativizemos 2020, como se ele marcasse apenas o início
de um tempo que veio para ficar. Cada ano, hora ou segundo, são únicos, quando
percebemos a vida que nos faz sentir a
falta de quem não está mais, do que não está mais e, principalmente, do que já
está diante de nós há tempo e tentávamos empurrar ‘para baixo do tapete’, como se fosse uma poeira simples. A desigualdade, o racismo, o fascismo, a maldade dentro de cada um de nós são cruéis demais. Não podem ser desmentidos.
Refletimos sobre 2020 quando percebemos a fragilidade que
nos insere na qualidade humana. Quando perdemos muito mais do que aquilo que
estava concretamente em 2019, mas uma sombra que escurecia as mudanças que a
nossa vida não realizava por não sentirmos
vergonha de perpetuarmos a perversidade da aparência de um sorriso que apenas usamos
como Coringa[ii].
Se deixarmos para trás a nossa vaidade, 2020 talvez seja um ano em que a vida
pretenda transformar o tempo, sem servidão apenas à sua passagem.
Simone Engbrecht- psicanalista