Independência sem domínio

 “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar” José Saramago

Nos inspiramos em frases que, quando espelhadas, revelam  a sua versão contrária e oferecem um sentido inovador aos verbos. É o caso da citação de José Saramago: “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar”. Alguns pontos, hoje revisitados na psicanálise, como Complexo de Édipo, falo, feminilidade e pulsão de morte, apresentam discussões interessantes sobre temas como o poder e o domínio, sobre o gostar e o ter.

Foto: Reprodução

Exogamia, na biologia, é um termo utilizado para o  cruzamento entre indivíduos pouco relacionados geneticamente. Em psicanálise, a partir do texto Totem e Tabu de 1913, Sigmund Freud formulou a complexa ideia de como se separar de um grupo de iguais,  do clã  ou da família: não relacionar-se incestuosamente, nem violentamente. Saber deixar[i]. O processo de formação do eu implica deixar de ser alguém nomeado somente pelo seu pertencimento e construir a noção de coletividade, fora do eixo privado.

Percebemos a dificuldade de algumas pessoas em considerar que um bem público não lhe pertence, pois é de todos, também a dificuldade em amadurecer possuindo tolerância a estar sozinho, e ainda: a dificuldade em possuir posições e não contrariedades. Essa última dificuldade, pode, na maioria das vezes, não ser sentida como sofrimento, pois a cultura estimula mais as posições polarizadas do que aquelas que buscam o conhecimento.

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Afirmar, por exemplo, que alguém é independente, porque não faz o mesmo que os pais, ou que amadurece, porque casa, ou ainda, que diante de tudo, se apressa a dar a sua opinião, pois é uma pessoa que se posiciona, são enganos comuns sobre a maturidade. A possibilidade de independização acontece quando muitos parâmetros convivem  simultaneamente  nos momentos de tomada de pequenas ou grandes decisões na vida de alguém,   e, principalmente, junto ao prazer em ouvir os outros e refletir. O pensamento que julga para reconhecer qualquer objeto, vai dando espaço ao longo do tempo ao pensamento que investiga. Quando experimentamos um novo sabor, tentamos primeiro associá-lo àqueles que já possuímos. Aos poucos conseguimos nos desprender de uma referência simplista, com a avaliação entre  bom e ruim.    

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A autonomia  é construída pelo trabalho psíquico resultante de um  conflito inerente a condição humana diante de uma tendência mortífera masoquista de servidão, a tendência a permanecer e repetir o mesmo. Esse impulso, nomeado em psicanálise como pulsão de morte[ii], guarda várias máscaras para sua manifestação. O sofrimento de muitas pessoas está em acreditar que a solução do seu mal estar, por exemplo, esteja na mudança dos outros, pois querem receber sempre o mesmo. É comum que desejos infantis se atravessem num adulto, buscando, então, alguém para organizar as suas tensões, como alguém assim o fazia quando criança.

Parcerias com acordos infantis possuem como cláusulas a posse ou a falta de entrega.  Freud trouxe o mito de Édipo demarcando a complexidade do processo de individuação. Investigarmos o que mantém a nossa intimidade e a capacidade de convívio no coletivo estão profundamente ligados à exogamia, no seu sentido simbólico, ou seja, ao risco de nos aproximarmos da diferença e não nos basearmos na satisfação apenas daqueles que vieram antes. Respeitar o outro não é servi-lo e nem tentar dominá-lo, respeitar o outro é abrir o campo do prazer na complexidade.

Simone Engbrecht - psicanalista


[i] ‘Saber deixar’ – termo utilizado por Jacques Derrida – filósofo franco-magrebino qe viveu entre 1930 e 2004 – e que implica numa aquisição de complexidade psíquica.

[ii] Pulsão de Morte, conceito formulado por Sigmund Freud em  1920 na obra Além do Princípio do Prazer.

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