Negociando com o tempo: entre o cansaço e a vida

                                                                                       “A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e se desmisturar.”

                                                                                                                                                                           Graciliano Ramos

         Ouvimos e lemos que o argumento para que as pessoas retornem a hábitos que possuíam, antes da sindemia[i] de Coronavírus, seja o cansaço em relação às medidas de distanciamento social. Parece que, no entanto, o motivo para que alguém realize um tratamento de saúde, se exercite ou trabalhe em busca do cuidado de outras pessoas parece o mesmo desde março até essa primavera brasileira: a Vida. Então, cabe refletir sobre o cansaço.

        

Foto: Reprodução

Estamos tristes por tantas perdas, elas demandam a nossa energia a fim de passarem por um processo de cicatrização próprio do luto. Porém, esse cansaço, proveniente do luto, não seria a razão de voltarmos às ruas como se o vírus não mais existisse entre nós. Talvez o nosso cansaço, nesse momento, represente outro esforço.

         Freud, em O futuro de uma ilusão(1927), teceu a crítica a sombra provocada pela negociação entre a renúncia à satisfação de nossos desejos e uma a promessa de felicidade futura. Sacrifícios são cobrados em forma de ressentimento quando a submissão voluntária é um contrato estabelecido entre o eu e os ideais de cada sujeito[ii].

         Realizar qualquer tarefa no presente: estudo, trabalho, cuidado com alguém, necessita que façamos uma escolha, entre o que fazemos e deixamos de fazer apenas no presente, pois é somente esse tempo que possuímos como nosso. Uma escolha que envolve o tempo: com o que ou quem mesmo pretendemos gastá-lo, se pretendemos doá-lo. Porém, se o tempo se transformar num ente como alguém com quem se pudéssemos jogar, iremos nos iludir. Nenhum momento substitui o outro, não podemos fazer negócio com ele. Na ocasião em que desejamos que o futuro pague aquilo que renunciamos no presente,  quando esse  se torna passado, o futuro passa a ser um presente  recheado de dívidas, pelas feridas que foram abertas por uma negociação com o tempo. 

Foto: Reprodução

         Aqueles que já se encontravam com as pessoas  para consumir momentos que preenchiam o seu vazio existencial, que trabalhavam para ostentar o que podiam consumir sendo consumidos por um sistema que lhe transformava numa peça necessária ao vazio alheio, não conseguiram provavelmente escolher o distanciamento deixando de negociar com o tempo, não conseguiram ficar sozinhos sem negociar com o futuro. Precisamos ficar distantes para aprender a sermos pessoas melhores, precisamos ficar em casa porque o vírus irá embora em maio, precisamos ficar em casa porque o vírus é um castigo pelo que fizemos de errado no passado: ilusões.

Ao nos distanciarmos de quem amamos, é fundamental realizarmos essa escolha sem ilusões de futuro, mas com coerência com o nosso presente. É por escolhermos a vida e o amor que escolhemos renunciar a certos prazeres. Não é sacrifício escolher, é liberdade. Porém, estejamos cientes do contrato: a submissão a sermos consumidores de ideologias e  imposições sociais, quando escolhida, cobra um preço: a nossa vida presente e a nossa morte em vida no futuro. Cansados por nos tornarmos zumbis da vida que não tivemos. A sindemia é uma realidade não escolhida. Somente a partir do nosso contato com a realidade não escolhida que podemos optar pela nossa posição. Não nascemos porque escolhemos conscientemente vir a esse mundo, mas renascemos a cada instante que nos tornamos proprietários de nossas ações.

Que a vida possa ser uma escolha, que a distância social, quando possibilidade de escolha, adquira a cor da liberdade de renúncia de encontro,  representada por amor presente,  a fim de que  a desilusão e a desmistura possam ser feitas para renascermos todos os dias.

Simone Engbrecht- psicanalista



[i] Sindemia- conceito formulado no livro de Merril Singer, médico e antropólogo, em Introduction to Syndemics de 2009, que caracteriza a interação entre problemas de saúde da população em seu contexto social e econômico.

[ii]Essa temática foi também discutida o texto publicado nesse blog em 14/11/17: Para que serve a Psicanálise?

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