A transmissão do Vírus e o contato com a maldade
Uma das medidas de prevenção da transmissão do Coronavírus é o distanciamento social. É muito novo e estranho que cada um tenha que se considerar potencialmente o vetor da transmissão de um vírus letal a fim de conseguir demonstrar amor. Muitos ainda ficaram presos a ideia da transmissão associada apenas a visibilidade dos sintomas. Ensaiando a cegueira[i]. Acreditar em algo invisível e desconhecido acontece somente para aqueles que crêem na finitude.
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No
último ano, não abraçar um familiar, um amigo, alguém com quem possuímos
intimidade emocional, causa um estranhamento inquietante[ii].
Ao nos desenvolvermos, tomamos contato com a nossa maldade quando percebemos
que nossas ações podem provocar dor no outro. Hoje,
nos perguntamos sobre o vírus invisível e podemos refletir sobre a nossa
maldade também silenciosa.
Albert Einstein em 1932 escreveu uma carta a Sigmund Freud [iii]questionando-o sobre a possibilidade de controle da destrutividade humana através da sua evolução mental, por que a guerra?. Freud respondeu que o desejo de aderir à guerra era um dos efeitos da pulsão de morte, presente no interior de cada indivíduo, e cujo antagonista seria Eros. Tudo o que favorece os laços emocionais entre os humanos, a civilização, age contra a guerra.
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Portanto,
não basta recorremos à racionalidade, é preciso fazer frente à pulsão de morte,
ou seja, é preciso ser contra à destrutividade que promove aliança com a
crueldade. Amar é preciso. E o amor não é preciso[iv]. Necessitamos do simplicidade, sem estar nada
previsto como um relógio.
As
relações assim que se tornam íntimas possuem um vocabulário próprio, rodeado
por apelidos e metáforas que iluminam pequenas coisas que remetem a
experiências onde o amor se fez presente. Dessas pequenas coisas são feitos os
encontros felizes dos quais estivemos afastados, em 2020 e agora, para conseguir amar. Agora, amar de outra maneira, tomando distância, fazendo frente à possibilidade de sermos hospedeiros de um vírus letal.
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Fomos
adultos ainda não vacinados quando sentimos saudade e entendemos que precisamos,
com muita veemência, um posicionamento autônomo que controle a nossa maldade em
negar que poderíamos abrigar, dentro de nós, a causa da morte de alguém que
amamos. Em breve, seremos adultos e vacinados contra a Covid. Desejamos que um
dia possamos também estar vacinados contra a maldade da cegueira que insiste em
não enxergar a fragilidade da vida. Um dia, quem sabe: maduros e vacinados.
Simone
Engbrecht-
psicanalista
[i][i] Referência ao livro de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira.
[ii] Esse termo, Das Unheimliche,, também traduzido da obra freudiana por Ernani Chaves e Pedro Tavares, por infamiliar, representa a nossa sensação diante da nossa crença na morte. Não temos a experiência da própria morte, por isso, não possuímos a representação inconsciente da mesma. Portanto, não lembramos dela, mas acreditamos nela.
[iii] FREUD, Sigmund. Por que a Guerra? Trad. J. Salomão. Edição Standard Brasileira de Obras Completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago, 1980[1933(1932)]. v.22, p. 245-259.
[iv] Esse é o título de um
capítulo desse livro: ENGBRECHT,
Simone. O amor não é surdo: reflexões
sobre o amor. São Leopoldo: Sinodal. 2008, 116p.