Prejuízos à Intimidade

"O pudor é a mais afrodisíaca das virtudes." Nelson Rodrigues

        Há uma frase atribuída a Nietzsche[i] que utilizei na abertura do meu livro sobre o amor[ii]: Aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Refletimos sobre dois conceitos, nesse tempo de pandemia onde a comunicação pela internet foi mais utilizada: o rótulo e a intimidade.

        

Foto: Reprodução

Na atualidade, a fronteira entre a imagem e a realidade parece borrada. Um invólucro pode representar ou encobrir o conteúdo que ele envolve. Se, por um lado, os alimentos consumidos devem apresentar, na embalagem, data de validade, ingredientes que possuem e maneira como foram produzidos; por outro, somente o paladar de uma experiência vivida promove o encontro. Assim são os humanos, não basta a postagem de um sorriso, a companhia para uma fotografia ou o colorido de um cenário, para avaliar a vivência e o clima emocional no qual um encontro aconteceu. O rótulo, o diagnóstico, ou uma atitude não nos representa.

         Intimidade e privacidade são termos muito confundidos pela cultura capitalista. Ambos são contrários à ideia de público, porém por modos muito diferentes. Público x privado realiza oposição pela definição de propriedade. Em Psicanálise, Freud[iii] afirma que não existe o conceito de indivíduo, pois nos constituímos em grupo. Foi o conceito de Inconsciente, formulado por ele, que possibilitou compreendermos melhor o que é íntimo. Somos proprietários de nosso Inconsciente, sem que ele esteja sobre o nosso comando e possamos negociá-lo como um bem. Público X íntimo delimita o espaço das vivências às quais as imagens, as palavras ou expressões não alcançam.

         Íntimo é aquilo que guardamos sem valor de troca: o nosso Inconsciente não tem preço. Podemos até mesmo nos apropriar de parte dele, de nossa intimidade, sem que isso se torne moeda; exatamente o fazemos ao contrário, assim que realizamos a descoberta desse tesouro. Quanto mais consciente se torna o inconsciente, menos vulneráveis a prostituição nas relações se tornam os sujeitos.

 O que pensamos, desejamos e nos damos conta que se torna nosso, pode seguir não manifesto, seguir íntimo, porque possuímos uma porta, em nosso psiquismo, como a de um banheiro. A porta do WC, Water Closet, significa intimidade sem troca, privada, privacidade sem comércio. Possuímos uma água que pode descarregar ou mesmo eliminar de maneira fechada, sem que ninguém perceba o que o nosso Inconsciente produziu. O nosso pensamento pode dar conta da nossa intimidade, quando elaboramos o que está contido em seu conteúdo. A interpretação da conversa com os botões diz respeito somente a cada pessoa.

         Na puberdade, desenvolvemos a noção de vergonha porque ela separa a nossa intimidade do que é público naturalmente, sem necessitarmos de regras, mas desenvolvermos a nossa autonomia. O infantilismo de nosso tempo, a negação da latência, a falta de vergonha e a carência de filtro naquilo que se torna público, dificulta a construção da liberdade. Seres livres sentem pudor de sua intimidade. 

Imagem: Blog Villa Café

Uma pessoa que faz simplesmente o que quer não é livre, mas é uma pessoa sem censura e submetida à sua maldade. O limite entre comportamentos bizarros e autênticos não é dado pelo que é proibido, mas pela aquisição de uma propriedade inegociável: a intimidade. Quando ela vira mercadoria, para aquisição monetária, de segurança ou de um falso amparo, corrompe a existência. 

Foto: Reprodução

      Somos seres livres para nos responsabilizarmos por nossa intimidade e tomarmos atitudes coerentes com o que desejamos e escolhemos realizar e não pretendemos expressar. A liberdade não é expressa por um ato de  defecação no meio da sala, mas pela aquisição de autonomia suficiente para a utilização de um banheiro. Sermos livres não é simplesmente expressarmos as nossas emoções, porém sabermos lidar com a  parte que detectamos delas.

Não é necessário dançar conforme a música, como uma adaptação, nem nos imobilizarmos. Realizar a diferença entre rótulos e expressões possibilita que escutemos o que mantém a liberdade de nossa intimidade, sem prejuízos.

Simone Engbrecht- psicanalista


[i] Friedrich Nietzsche (1844-1900)  foi um filósofo, crítico cultural, poeta e compositor.

[ii] O Amor não é Surdo.

[iii] Sigmund Freud, pai da psicanálise, escreveu em 1921 Psicologia das Massas e Análise do Ego.

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