Inovação e Objetivo

"Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: 'Navegar é preciso; viver não é preciso'...Viver não é necessário; o que é necessário é criar." Fernando Pessoa

         É muito importante não deixarmos que certas palavras percam sentido por causa de um tsunami[i] destrutivo com a aparência da ignorância. Inovação e objetivo não precisam apenas colar aos propósitos neoliberais de produtividade ou à ausência de subjetividade. Ao contrário, Sigmund Freud (1919)[ii] formulou que algo precisa ser acrescentado ao novo para ser inovador. No instante em que ele falava sobre a crença na realidade e na morte, já havia também formulado o conceito de teste de realidade.

        

Imagem: Site de Curiosidades

Acreditamos na morte e, segundo ele[iii], perder e partir são experiências diferenciadas pela vivência. Nos emocionamos, nos entristecemos e estamos enlutados pelas mortes mundiais em 2021, e o que nos renova em vida não pode ser uma  justiça[iv] pela vingança. Nosso destino, enquanto ponto de partida, não é o mesmo, mas necessitamos observar a igualdade humana. Todos somos raros[v], especiais e únicos.

         O que define a raridade de nossa existência é o que acrescentamos de inovador ao tempo; por sermos diferenciados como seres que conseguem  refletir sobre a  transitoriedade. O nosso lugar enquanto esposa de Fulano, pai de Beltrana, filho de Ciclano,  ou ainda, sócio ou parceiro de XYZ, não consegue dizer nada a nosso respeito. Fala  apenas do lugar que ocupamos no espaço, como: moro em Tal Lugar, trabalho para o Grupo Tal, meu sobrenome é N. Existimos no tempo, somente quando fazemos diferença nele, quando marcamos a história com a nossa passagem nesse planeta. Pode ser que nenhuma rede social capture a imagem do que realizamos, que não sejamos VIPs[vi] ou famosos. Pode ser que nenhuma couro seja curtido com um clique em um sinal de jóinha. Existimos em nossas inovações e objetivos.

Acrescentamos algo ao novo, quando não repetimos padrões, quando saímos da endogamia para exogamia, quando nos apropriamos de nossa herança, bens ou dívidas, e nos ocupamos fundamentalmente com o que desejamos deixar no coletivo.

O lugar que ocupamos na vida que não encontra nenhuma substituição é aquele no qual criamos algo inovador, onde deixamos a nossa marca, uma lembrança. Aqui não me refiro a uma imagem e muito menos a um logotipo, mas a nossa presença humana, de quem se importa com a vida. De quem, no sentido metafórico,  presenteia o outro com uma lembrança.

O nosso trabalho, o nosso objetivo pulsional vital, conduz ao cultivo da terra que recebemos como destinada. Não nos aposentamos da vida ao envelhecer, se o fizermos: morremos. Somos insistentemente convocados a optar pelo novidade do dia no calendário, ou melhor, pela inovação que acrescentamos a cada dia com a nossa presença, por estarmos vivos e amadurecendo nossa capacidade amorosa. 

Nó de marinheiro: Site Marina Imperial

Não é nada simples realizar o luto de 2021, um ano que parece ter herdado todas as dores e negações de 2020. Esperamos que o infamiliar e  incômodo de 2022 nos inquiete e angustie a fim de que acreditemos na morte, na falta, na saudade e, sendo assim, nos percebamos vivos e desejosos da preservação da humanidade e de uma aliança fraterna entre os sobreviventes. Inovemos através das mudanças em nossos laços. Eles serão somente refeitos quando não estiverem apertados e aprisionados em nós.

         Simone Engbrecht- psicanalista



[i] Tsunami: Água sobrejacente deslocada verticalmente quando os limites de placas tectônicas destrutivas ou convergentes se movimentam abruptamente.

[ii] Das Unheimliche, texto escrito por Sigmund Freud em 1919, traduzido por estranho, sinistro, inquietante, infamiliar, incômodo. Optamos, nesse texto, pelo termo infamiliar, traduzido por Ernani Chaves e Heliodoro Tavares.

[iii] Sigmund Freud ainda em 1919 deixa por herança a ideia de que em nosso Inconsciente não possuímos memória da morte, mas acreditamos nela por perdemos semelhantes e não possuirmos experiência própria do que acontece.

[iv] Sigmund Freud(1921) em psicologia das Massas e Análise do Eu mostrou com clareza a diferença entre direito e justiça.

[v] Frase utilizada pelos diversos grupos que reivindicam a igualdade de direitos daqueles que são portadores de doenças raras.

[vi] VIP: Very Important Person.

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