Elogio à Ignorância


Vivemos em um momento em que as diversas formas de negação são buscadas como uma tentativa de proteção da percepção da realidade. Talvez a mais perigosa negação seja aquela que busca retirar a importância do que segue sendo percebido. O termo em Alemão utilizado na psicanálise para esse mecanismo é Verleugnung. Traduzido por desmentido, renegação, recusa ou negação[i].

 

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    Percebermos a nossa maldade enquanto espécie e tentamos nos defender disso, banalizando o que enxergamos. E a maldade superficial cresce facilmente sem a necessidade de raízes[ii]. Essa é uma defesa que nos ataca ao invés de nos proteger, pois dá abertura para uma forma especial de irresponsabilidade moral que cultiva um sentimento inconsciente de culpa.

Adolfo Sànchez Vàzquez[iii] discutiu a relação entre responsabilidade moral e ignorância, demarcando que, se por um lado, a falta de consciência presente quando alguém ignora as conseqüências daquilo que faz o  exime da responsabilidade moral, por outro, não podemos confundir o desconhecimento com a obrigação de saber o que precisava saber. Uma criança pode ignorar que, ao morder a mãe ao ser amamentada, esse ato provoca dor, porém, para um adulto, é necessário perceber a causa que provoca dor nos humanos, pois ela é um alarme de proteção.

Ignorar o que provoca dor nos outros a fim de nos livrarmos de um masoquismo original revolucionou a teoria de Sigmund Freud[iv]em 1920, quando apresentou a ideia de um sadismo silencioso que pode nos arruinar pelo nossos êxitos. É como se houvesse a aquisição de dívida contraída pela existência humana, cujo pagamento fosse feito por uma tendência autodestrutiva. Uma dívida/culpa silenciosa a princípio, cujo ruído só acontece mediante uma punição.

Nos questionamos ao nos depararmos com um vírus invisível: por que mesmo mais do que negar a importância do risco que nós representamos uns aos outros, temos elogiado a ignorância. Há uma aceleração na aquisição de informações, conhecimento sobre algoritmos em detrimento do valor dos processos de aprendizagem. Existe uma supervalorização da demonstração de força fálica encobrindo a fragilidade dos sentimentos. Acontece um elogio à esperteza conquistada pela ganância do Ter, rejeitando a essência de Ser um humano humanizado. 

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Em psicanálise, a reação terapêutica negativa provocada pelo sentimento inconsciente de culpa é trabalhado através da construção de uma angústia que possa soar como um alarme através das sensações infamiliares e nada banalizadas. É importante não classificarmos o medo como uma loucura paranóica, e uma curiosidade como o motor necessário para estarmos realmente acompanhados, abandonando ressentimentos e dívidas silenciosas em nossa existência. E fundamental: a nossa  ignorância pertence à nossa responsabilidade.

Simone Engbrecht - psicanalista



[i] Traduzido por Luiz Hanns, no Dicionário Comentado do Alemão de Freud

[ii] Conceito ‘Banalidade do Mal’ de Hanna Arendt( 1906-1975) em Eichmann em Jerusalém.

[iii] Adolfo Sànchez Vàzques (1915-2011) filósofo espanhol, notadamente nas áreas de ética, estética, filosofia política e filosofia contemporânea.

[iv] Sigmund Freud(1856-1939) conceito de pulsão de morte em Além do Princípio do Prazer.

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