O Antigo na Inovação
Iniciamos esse texto refletindo
sobre um elemento que traz um sentimento infamiliar[i]
em algumas pessoas e uma indiferença em tantas outras: a IA ou AI, siglas para
Inteligência Artificial ou para Artificial
Intelligence. O que mesmo acontece diante da IA? Será que aqueles que se
assustam com a IA são resistentes ao novo, são pessimistas, colocam freios ou
empecilhos a um desenvolvimento tecnológico?
Foto: Reprodução |
Essas questões nos remetem a algo que Sigmund Freud[ii] sublinhou em sua observação: o psicanalista geralmente se interessa por uma questão específica da estética[iii]: o núcleo de algo angustiante que o torna inquietante. Ele pesquisou sobre esse tema em descobertas anteriores e utilizou um ensaio escrito por Ernst Jentsch[iv], que diferenciou o novo do inovador. Nem sempre algo novo inova. O inovador é associado ao assustador, mas nem tudo o que é novo assusta. Retomemos aqui o que clareou esse autor, a fim de avançarmos no nosso texto. O que é estranho, sinistro, inquietante[v] é o oposto do que é íntimo e doméstico. Sendo assim, consideraríamos que algo se torna assustador por não ser conhecido. Por outro lado, nem tudo o que é novo é infamiliar. Um ingrediente especial deve ser acrescentado a novidade, para tornar-se alguma coisa inovadora e conter um sentimento de estranhamento. Na receita para a inovação falta algo quando estamos apenas diante de um elemento novo: falta um toque de incerteza intelectual, de alguma coisa secreta que possa vir à tona.
Uma
repetição, que pode também ser considerada acaso ou simples coincidência, nos
remete a uma sensação infamiliar quando nos faz retornar ao ponto infantil da
onipotência de pensamentos e a uma
concepção animista[vi]
de mundo. A nossa relação com a morte, por exemplo, está ligada a nossa crença
nela. Acreditamos naquilo que não
vivemos. Aquilo que já vivenciamos, recordamos sem precisar acreditar. Já que não possuímos a representação, em nossa
memória, da nossa própria mortalidade, pois não faz parte de nossa experiência
individual, acreditamos na morte. Quando alguém morre, sentimos, na carne, a
perda, mas não a morte. Aquilo que não vivemos, como a nossa própria morte,
podemos tão somente acreditar que exista.
Imagem do filme Coringa |
A nossa
onipotência infantil, quando parece ter sido superada na realidade material ou
na ficção, parece se descontrolar quando
surge um sentimento infamiliar. A solidão, o silêncio e a escuridão não
desaparecem na maioria das pessoas, segundo Freud[vii].
Eles retornam e se manifestam através dessas inquietações e representam uma
ambivalência humana.
Em
‘Agora é Assim’[viii],
o desejo de igualdade, por exemplo, pode, quando movido pela inveja, nos transformar numa
massa de manobra que não admite a ancestralidade e que nega as injustiças
herdadas. Na associação entre a democracia e a morte, experiências ainda não
vividas, a infamiliaridade parece estar na maldade humana que retorna por uma
qualidade especial no sentir.
O texto freudiano sobre o que nos inquieta foi produzido
pouco mais de vinte após a primeira exibição comercial de um filme na história
em dezembro de 1895 pelos Irmãos Lumière.[ix]
O cinema além de nos assombrar, desde o seu início, marca uma descoberta humana
com a dificuldade de traçarmos o
instante de sua origem. A cronofotografia, técnica que captava vários quadros
de impressão eram utilizadas em pesquisas científicas sobre movimento corporal[x].
Eadweard Muybridge analisou as diferentes velocidades do galope dos cavalos e
provou que, em alguns instantes, eles ficavam com as quatro patas fora do chão.
Era a partir das imagens que se podia, então, reproduzir a realidade, desde as
lentes de um microscópio ou das câmeras fotográficas.
As imagens do cinema foram inovadoras, inquietantes e nasceram a partir de uma pesquisa sobre a realidade material. Mesmo a ficção das obras foram obtidas através de imagens e de áudios produzidos em vivências. Pessoas se beijavam, mesmo que sem uma emoção correspondente, diante de lentes que capturavam a imagem da cena. Havia uma filmagem, um setting de filmagem, atores, cenário, direção, roteiro, que fizeram e fazem parte dessa sétima arte. O que dizer da IA recriando imagens a partir do que clicamos, de imagens que entregamos, de curiosidades e desejos que expressamos?
Imagem: Rose da série de animação Família Jetsons |
Uma
inteligência artificial pode ser vista como natural, pois entrega algo a partir
de dados entregues por humanos. Mas pode ser sentida como assustadora. É
inovadora ou nova? O passado nos retorna através da IA não através de uma
memória, ou de uma consciência, porém através de associações das quais não
possuímos nenhum domínio. Dados entregues a rede de maneira secreta talvez não
sejam artificiais, mas produzem sentimentos naturais como a infamiliaridade
diante do que foi retirado atravessando uma fronteira da qual não possuímos
consciência.
Não
entregamos a rede a nossa intimidade humana.
O argumento para essa afirmação é que pode estar equivocado. Podemos de
maneira ingênua supor que decidimos com quem os nossos dados serão
compartilhados. Acreditando que decidimos o site com o qual interagimos ou
compartilhamos e o que tornamos público. Esse é um engano semelhante aquele que
efetuamos ao não pensarmos na nossa morte o tempo inteiro. Uma negação aparentemente natural.
Ao
visualizarmos a nossa imagem envelhecida ou rejuvenescida através de um
aplicativo, ouvimos a nossa imagem dizendo coisas que não dizemos, ou, mais
estranhamente, ao escutarmos os nossos pais dizendo ou fazendo o que não imaginávamos
que diriam ou fariam, somos remetidos a uma incerteza intelectual. Na tentativa
de nos localizarmos, nos posicionamos investidos por um sentimento de infamiliaridade,
das Unheimliche. Esse sentimento de
inquietude diante de uma inovação talvez seja a intimidade humana não entregue
e que pode tornar algo novo realmente inovador.
A IA não
somente nos inquieta pela infamiliairidade, mas nos humilha quando escutamos outros
humanos afirmando que o nosso sentimento estético de inquietação é produto de
uma resistência ao novo. Acreditamos na nossa morte e a nossa angústia, diante
da nossa finitude, parece ser a inovação humana mais capaz de criar qualidades
especiais no nosso sentir.
A IA
não nos ultrapassa enquanto sentirmos o infamiliar, das Unheimliche, diante de um boneco no colo de um ventríloquo,
diante do rosto que perdeu a expressão
por causa de um revestimento com a alegria jovem do palhaço, ou ainda, diante
de frases cuja autoria é de um autômato, porque deixaram de ser eternas, mas se
tornaram anacrônicas. Será que estamos deixando de estranhar os autômatos, ou
aqueles que reproduzem uma voz que não é a sua, ou mesmo, aqueles rostos que
não expressam mais a tristeza ou a passagem do tempo? Acreditamos que não.
Porém, corremos o risco de perder esse sentimento infamiliar não diante da IA,
mas ao nos tornarmos os bonecos no colo de alguém que fala por nós.
Simone Engbrecht - psicanalista
[i] Termo trabalhado por Sigmund Freud em 1919, no texto chamado Das Unheimliche, traduzido por O Infamiliar, por Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, na Edição Bilíngue da Autêntica, Comemorativa ao centenário da obra.
[ii] Autor de O Infamiliar, texto de 1919.
[iii] Estética aqui compreendida como a doutrina das qualidades do nosso sentir.
[iv] Texto de 1906, Sobre a Psicologia do Infamiliar- Zur Psychologie des Unheimlichen, escrito por Ernst Jentsch.
[v] Essas são outras traduções já realizadas para Unheimliche, além de infamiliar.
[vi] Concepção animista – ideia de que os seres são animados por sua alma.
[vii] Sigmund Freud, Das Unheimliche, 1919.
[viii] ENGBRECHT, Simone. Agora é Assim In MONGELÓ, A.B.C. e MANDELLI, P.A.P. (orgs). Psicanálise & Democracia. Porto Alegre: Melhorpubli Publicações. 2023. p.73-85
[ix] Fonte:artigo de Márcio Barreto, Cinema, Ciência e Percepção encontrado na Scielo.
[x] Uma dessas pesquisas foi realizada por Eadweard Muybridge em 1878.