A Finitude o o Envelhecimento
Quem já não ouviu o seu desejo
ou o de alguém expresso pela vontade de
possuir a ‘cabeça de hoje com o corpo de ontem’. Um ponto de vista constituído
pela memória da experiência participando da possibilidade de sensações de um
corpo com os olhos e os ouvidos em pleno funcionamento. Seria como adquirirmos
a possibilidade de um sommelier,
tendo conhecimento em enologia[i].
O tempo pode deixar a visão e a audição menos aguçada, a caminhada mais vagarosa,
porém, se a experiência for
considerada, o olhar adquire a percepção
de sutilezas, a escuta consegue reconhecer o tom de voz diferente de alguém
preocupado e a demora dos passos alcançam a atenção ao caminho. Importante
salientar que o nosso ‘porém’ aqui não tem a intenção de ser compensatório ou
consolador.
Sigmund Freud (1937)[iv],
inquietou-se com o tempo de duração das análise e relata que fracassou ao
anunciar o fim do tratamento antes de ter tratado a transferência[v]
de um paciente no seu devido passo. Compreendemos o sentido de uma frase de
acordo com a sua pontuação. Realizamos uma entonação de exclamação ou uma
pergunta, quando vislumbramos o ponto que aparece após as palavras. Sabemos que
a frase termina e é o seu fim da o seu sentido.Foto: Reprodução
Na vida, não é preciso chegar exatamente na morte para
sentirmos a finitude. A fragilidade do corpo e as perdas são como as pontuações
de nossas frases. Esses intervalos na respiração que dão um sentido após o ar
ficar em suspenso. Na morte, simplesmente paramos de escrever. Acreditamos nela,
mas não possuímos memória dela[vi].
Nos inquietamos com a sua infamiliaridade, nos inquietamos com a nossa
fragilidade. Nos inquietamos quando a morte se apresenta nas pontuações de
nossa história. Quando tomamos contato com a finitude, sem termos chegado ao
final do texto. Estamos vivos e damos
sentido na nossa existência com esses intervalos.
Nos questionamos, no entanto, sobre a negação proposta a esses intervalos vivenciados com a fragilidade, a negação a essas inquietações, a negação à indiferença com o que há de específico em cada rosto, em cada existência e em cada experiência que pode servir como modelo de herança, como alteridade. A dor de intervenções no corpo pode silenciar a pontuação de uma fragilidade experimentada com a passagem do tempo. O envelhecimento é o processo de pontuação de nossa história. Ele inicia assim que nascemos, mas vamos interpretando mais a entonação das frase, quando o tempo de vida avança.
Foto: Reprodução |
Degustarmos a vida, reconhecermos e nos protegermos do que pode nos envenenar e acelerar a nossa
morte parece fundamental para apreciarmos o amor. Amor sem um apego a imagem,
mas o centro da frase de nossa própria narrativa- como verbo. Envelhecer não
tem cura, assim como a análise, porque não somente a ideia de doença foi questionada
depois de Freud, como a ideia de restabelecimento de um estado anterior de
coisas, de nossa pulsão de morte. A vida não é interminável, mas o impacto de
nosso desconhecimento sobre o nosso futuro é o que nos torna humanos. Estarmos
com a mente e o corpo no momento presente pode ser uma conquista quando nos
inquietamos com a finitude, sem uma necessidade de negarmos a morte.
Simone Engbrecht- psicanalista
[i] Segundo a Revista Adega (2022) o termo Sommelier deriva do termo francês, échanson com origem na Idade Média, utilizado para designar pessoas que guardavam produtos como frutas, carnes, pães. O Sommelier, além de armazenar, provava o vinho antes de servir ao rei e assegurar que não estava envenenado. Já o enólogo é a pessoa especializada em Enologia, ciência que trata do vinho, mais especificamente da técnica de produzi-lo.
[ii] Inspirada em reflexões propostas pela antropóloga Mirian Goldenberg(2013), A Bela Velhice.
[iii] Contardo Calligaris, Psicanalista, escritor de A Adolescência (2000) editado pela pela Publifolha.
[iv] Sigmund Freud, Análise Terminável e Interminável (1937).
[v] Transferência, segundo Freud(1912), é a forma como cada indivíduo se conduz em suas relações, através de uma disposição inata e influências sofridas nos primeiros anos, produz um método repetitivo e de se posicionar diante dos outros.
[vi] Essa ideia foi estudada por essa autora em A Psicanálise Infamiliar, publicada no livro A Potência dos Encontros com a Psicanálise(2020), baseada nos estudos de Das Unheimliche de Sigmund Freud(1919).