A Finitude o o Envelhecimento


                Quem já não ouviu o seu desejo ou o  de alguém expresso pela vontade de possuir a ‘cabeça de hoje com o corpo de ontem’. Um ponto de vista constituído pela memória da experiência participando da possibilidade de sensações de um corpo com os olhos e os ouvidos em pleno funcionamento. Seria como adquirirmos a possibilidade de um sommelier, tendo conhecimento em enologia[i]. O tempo pode deixar a visão e a audição menos aguçada, a caminhada mais vagarosa, porém, se a experiência for considerada, o olhar adquire a  percepção de sutilezas, a escuta consegue reconhecer o tom de voz diferente de alguém preocupado e a demora dos passos alcançam a atenção ao caminho. Importante salientar que o nosso ‘porém’ aqui não tem a intenção de ser compensatório ou consolador.

        

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    Por que mesmo a juventude está em nosso tempo como sinônimo da juventude[ii]?  Alguém faz um novo corte de cabelo e é possível que escute como sinal de elogio: ‘você ficou mais jovem’. Juventude e beleza há algum tempo estão ligadas, mas acontece uma nova sofisticação nessa sociedade. Muito mais do que diminuir os sinais do tempo no corpo, hoje a indústria da estética almeja apagar sinais de diferença nas características individuais. O padrão não é apenas o jovem, mas rostos que apagam traços que marcam a ancestralidade. Há pouco mais de vinte anos atrás, Contardo Calligaris[iii], nos questionava sobre os adultos terem por ideal a vida do adolescente e esse, por sua vez, encontra-se imerso em uma crise por não possuír uma identidade que os assegure. Como herdar a sabedoria construída com a experiência quando tudo parece descartável? Como conquistar um sentido especial para a sua existência, quando os modelos de identificação não oferecem escolha, pois pertencem a um único padrão virtual?

         Sigmund Freud (1937)[iv], inquietou-se com o tempo de duração das análise e relata que fracassou ao anunciar o fim do tratamento antes de ter tratado a transferência[v] de um paciente no seu devido passo. Compreendemos o sentido de uma frase de acordo com a sua pontuação. Realizamos uma entonação de exclamação ou uma pergunta, quando vislumbramos o ponto que aparece após as palavras. Sabemos que a frase termina e é o seu fim da o seu sentido.

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         Na vida, não é preciso chegar exatamente na morte para sentirmos a finitude. A fragilidade do corpo e as perdas são como as pontuações de nossas frases. Esses intervalos na respiração que dão um sentido após o ar ficar em suspenso. Na morte, simplesmente paramos de escrever. Acreditamos nela, mas não possuímos memória dela[vi]. Nos inquietamos com a sua infamiliaridade, nos inquietamos com a nossa fragilidade. Nos inquietamos quando a morte se apresenta nas pontuações de nossa história. Quando tomamos contato com a finitude, sem termos chegado ao final do texto.  Estamos vivos e damos sentido na nossa existência com esses intervalos.

         Nos questionamos, no entanto, sobre a negação proposta a esses intervalos vivenciados com a fragilidade, a negação a essas inquietações, a negação à indiferença com o que há de específico em cada rosto, em cada existência e em cada experiência que pode servir como modelo de herança, como alteridade. A dor de intervenções no corpo pode silenciar a pontuação de uma fragilidade experimentada com a passagem do tempo. O envelhecimento é o processo de pontuação de nossa história. Ele inicia assim que nascemos, mas vamos interpretando mais a entonação das frase, quando o tempo de vida avança.  

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         Degustarmos a vida, reconhecermos e nos protegermos do  que pode nos envenenar e acelerar a nossa morte parece fundamental para apreciarmos o amor. Amor sem um apego a imagem, mas o centro da frase de nossa própria narrativa- como verbo. Envelhecer não tem cura, assim como a análise, porque não somente a ideia de doença foi questionada depois de Freud, como a ideia de restabelecimento de um estado anterior de coisas, de nossa pulsão de morte. A vida não é interminável, mas o impacto de nosso desconhecimento sobre o nosso futuro é o que nos torna humanos. Estarmos com a mente e o corpo no momento presente pode ser uma conquista quando nos inquietamos com a finitude, sem uma necessidade de negarmos a morte.

Simone Engbrecht- psicanalista



[i] Segundo a Revista Adega (2022) o termo Sommelier deriva do termo francês, échanson com origem na Idade Média, utilizado para designar pessoas que guardavam produtos como frutas, carnes, pães. O Sommelier, além de armazenar, provava o vinho antes de servir ao rei e assegurar que não estava envenenado. Já o enólogo é a pessoa especializada em Enologia, ciência que trata do vinho, mais especificamente da técnica de produzi-lo.

[ii] Inspirada em reflexões propostas pela antropóloga Mirian Goldenberg(2013), A Bela Velhice.

[iii] Contardo Calligaris, Psicanalista, escritor de A Adolescência (2000) editado pela  pela Publifolha.

[iv] Sigmund Freud, Análise Terminável e Interminável (1937).

[v] Transferência, segundo Freud(1912), é a forma como cada indivíduo se conduz em suas relações, através de uma disposição inata e influências sofridas nos primeiros anos, produz um método repetitivo  e de se posicionar diante dos outros.

[vi] Essa ideia foi estudada por essa autora em A Psicanálise Infamiliar, publicada no livro A Potência dos Encontros com a Psicanálise(2020), baseada nos estudos de Das Unheimliche de Sigmund Freud(1919).

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